A loucura afegã

agosto 19, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Montanhas no Afeganistão

Foto de EJ Wolfson em Unsplash

Explicar o Afeganistão não é missão fácil para escritor algum na face da Terra. Especialmente agora, quando as trevas voltam a encobri-lo, sugando-lhe as esperanças. Eis aí um país que está pior que o Brasil, por mais incrível que isso possa parecer. Neste 15 de agosto de 2021, um domingo, os mujahedín talibãs completaram em tempo recorde a ofensiva iniciada três meses atrás ao ocuparam Cabul, a capital, sem qualquer resistência, pois o próprio presidente, Ashraf Ghani, fugiu rumo ao vizinho Tadjiquistão. Lá, seu jatinho não teve a estada permitida em Duchambe pelo presidente Emolali Rahmon (há 26 anos no poder), tendo de seguir para Mascate no Omã de onde logo deve ir para os Estados Unidos. De acordo com Nikita Ishenko, um diplomata russo que assistiu a fuga, Ghani debandou acompanhado por uma frota de 4 carros abarrotados de dinheiro. Ao assomar a aeronave que o levou para o exterior, o dinheiro não coube e parte das notas teve de ser abandonada na pista de decolagem. Segundo seu Ministro da Defesa, ele teria vendido a rendição para – tal qual um Jango do século XXI -, “evitar um banho de sangue”.

Num vexame estrondoso, encerram-se os vinte anos de presença norte-americana, coroando uma sucessão que parecia interminável de erros a partir da invasão determinada por George Bush em 2001 logo após o atentado às torres gêmeas. Joe Biden, sob o peso da avalanche de críticas condenando o seu infeliz manejo da crise, sequer mostrou arrependimento ou qualquer empatia com o mais do que sofrido povo afegão e com os aliados que, iludidos, acreditaram na fidelidade dos Estados Unidos da América (recordem-se os kurdos que enxotaram o Estado Islâmico do Iraque e da Síria para serem traídos e abandonados por Trump a fim de agradar seu ditador preferido, o turco Receep Erdogan).

Conflitos permanentes e a chance única

O Afeganistão tem 652 mil km2, pouco mais do que a França ou do que Minas Gerais, e quase a mesma população do estado de São Paulo: 45,6 milhões de habitantes, com a diferença fundamental de que ainda cresce a uma taxa de 2,7% ao ano. País insular no sudeste asiático, parte do seu território é desértico, com frequência sujeito a sismos arrasadores e a área montanhosa abriga picos inacessíveis como o mais alto de todos, Pnowshaj com 7.485 metros na cordilheira Hindu-Kush, onde tranquilos dromedários e cabras convivem com ursos e lobos. A escolha da primavera para a ofensiva talibã em boa parte se deve à proximidade das primeiras e violentas chuvas que inviabilizam a marcha dos guerreiros e de seus veículos pelas estradinhas de terra do interior.

Os afegãos são os arianos originais. Dominados pelos persas no século VI A.C. e por Alexandre O Grande duzentos anos depois, assistiram ao florescimento do budismo e do hinduísmo até que o islã se tornou predominante a partir do século XII da era atual. A história moderna começou em 1709 graças à liberação de Kandahar das mãos dos persas, mas ao final do século XIX o país virou um estado-tampão entre o dominante Império Britânico e a Rússia. Numa prévia sangrenta da atualidade, os ingleses haviam sofrido sua pior derrota ao serem expulsos de Cabul durante a 1ª. Guerra Anglo-Afegã por mujahedins que mataram a maioria dos soldados invasores. A resposta do Império foi de uma violência absoluta, arrasando a capital em 1839 e assassinando grande parte de sua população.

Com o isolamento das regiões montanhosas, a ignorância grassando por toda parte, a ausência de opções econômicas viáveis e o ódio às mulheres alimentado pelo tribalismo e por uma religião apegada a conceitos medievais, o Afeganistão seguiu sem encontrar seus rumos ao longo do tempo.

No entanto, em meio a tantas guerras, eis que surpreendentemente a nação também teve sua oportunidade de trilhar um caminho que a levasse à libertação de si mesma. Nos anos 1970, com o surgimento do partido único, eis que um escritor e humanista proveniente da etnia pashtun e fundador do Partido Comunista Afegão viu-se eleito presidente do Conselho Revolucionário e secretário geral do Partido. Nur Muhammad Taraki tomou posse em 30 de abril de 1978 e de maneira avassaladora passou a implantar um programa nunca visto por aquelas bandas. Pela primeira vez nas escolas foram adotados livros no idioma nacional, deu-se a separação entre religião e Estado, iniciou-se a reforma agrária com base em cooperativas de produtores e cancelamento de dívidas de camponeses pobres. Nas cidades, veio o salário-mínimo, a redução dos preços dos alimentos e a nacionalização do mercado exterior. As mulheres obtiveram a igualdade de direitos com os homens e o fim da obrigação de uso do véu, eliminando-se o dote para o casamento que era pago pelos pais da noiva. Com apoio financeiro soviético o país construiu estradas, pontes, linhas de transmissão de eletricidade e até um censo populacional (também o único até hoje) recenseou a maioria dos afegãos. Taraki, numa terra de analfabetismo largamente predominante, escreveu mais de 30 livros, em geral novelas curtas sobre temas sociais como os problemas que afetavam as mulheres ou a vida nas aldeias.

Pouco a pouco a resistência a tantas novidades tomou conta do país e as forças do atraso, principalmente as provenientes dos bunkers religiosos, impuseram seus controles, dizendo que as reformas se opunham à tradição. Isso nada tinha a ver com o fato de ser um governo nominalmente comunista, pois as ideias de Taraki em essência se destinavam a tirar a capa de agudo subdesenvolvimento que desde sempre cobria o Afeganistão. Até a cúpula soviética, embora formalmente apoiasse a administração afegã, começou a reclamar e passou a tramar a substituição de Taraki, por considerar que suas ideias eram radicais demais e deveriam dar lugar a um programa mais tradicional que respeitasse a atrasadíssima cultura do povo. Nos templos, os mulás incitavam os crentes a não mudarem seus costumes.

O desfecho tornou-se previsível, mesmo porque a queda a essas alturas contava com decidido suporte do Paquistão, dos Estados Unidos e da Arábia Saudita. Ao retornar de curta viagem a Cuba onde fora participar de uma reunião de países em desenvolvimento, Taraki fez escala em Moscou, onde Leonid Brejnev o informou de que Hafibullah Amin (segundo na hierarquia governamental), querendo o seu lugar, já matara quatro dos mais próximos auxiliares do presidente. No retorno a Cabul, numa reunião em palácio, um soldado à mando de Amin o assassinou em 10 de outubro de 79. Seu governo durou apenas 1 ano, 5 meses e 9 dias e teve como consequência a radicalização das posições da URSS que em seguida deslocou uma força de 80 mil soldados com apoio de 3.800 tanques e blindados para instalar-se no país. Mantendo seus hábitos guerreiros, os mujahedins resistiram à ocupação soviética pelos próximos 9 anos até que Gorbachev ordenou a retirada das tropas em 1989, após acumular prejuízos imensos sem qualquer compensação notória.

Das madrassas paquistanesas surgem os Talibãs

O movimento talibã é recente. Nasceu por volta de 1994 no norte do Paquistão logo após a retirada das tropas soviéticas, proliferando nas escolas religiosas, as madrassas, de início com dinheiro dos sauditas interessados em desenvolver a linha dura sunita por meio da imposição da sharia, a lei islâmica sem concessões ao “modernismo”. Em sua essência é pashtun, a principal etnia cujas bases se estendem nos acidentados territórios que fazem o limite entre as duas nações. Para seu crescimento meteórico conseguiu superar divisões tribais e conceituais internas, além de conviver sem choques tanto com a AlQaeda quanto com o Estado Islâmico. Deste, diferenciou-se pela maneira de lidar com as mulheres, dando-lhes um papel absolutamente passivo.

Radicais com promessas de obediência absoluta a Alá, levaram os americanos à exaustão tomando o poder em 1996 e aí permanecendo até serem expulsos em 2001 pela invasão promovida por George Bush na caça a Bin Laden. Então deixaram sua marca: mulheres fora da escola e dos postos de trabalho desde os 11 anos de idade, uso de burca completa, sem acesso a herança, submissão primeiro ao pai e aos irmãos, depois ao marido que lhes permite ou não saírem às ruas, punição à traição conjugal por apedrejamento, impedimento do acesso ao ensino superior. Em geral, decepar as mãos dos ladrões, proibição de TV, música, cinema e uso obrigatório de barba pelos homens.

Na segunda parte desse período os talibãs fizeram praticamente cessar a produção de ópio por meio da vigilância às plantações de papoula. No entanto, o Afeganistão reassumiu o posto de maior produtor do mundo de ópio e de heroína desde 2001 e durante a ocupação dos Estados Unidos recordes de oferta inundaram os mercados consumidores ocidentais. No ano de 2020, por exemplo, os cultivos aumentaram em 31%, sempre com concentração maior na província (limítrofe com o Paquistão) de Helmand, a sudeste.

Retirada americana e domínio Talibã

Superando de goleada aos russos que ficaram “apenas” nove anos no pobre Afeganistão, os EUA de Obama, Trump e agora Biden lá se aboletaram nos últimos vinte anos, um recorde em termos “ocupacionais”. Gastaram 825 bilhões de dólares em operações até prometerem ir embora no Acordo de Paz firmado em 2020 em Doha. A essas alturas já haviam morrido 157 mil pessoas, incluindo 2,3 mil mariners. Como contrapartida ao Acordo que na prática lhe devolvia o poder, o grupo islâmico prometeu dar acesso à educação superior e à atenção à saúde para as mulheres, além de novamente proibirem as plantações de papoula que financiaram e tornaram possível sua atual supremacia.

Não há qualquer indicação de que os talibãs irão cumprir com o prometido. Pelo contrário: engendram novas malvadezas. Na semana passada a Organização Mundial da Saúde, diante da irrupção de uma 3ª onda da Covid-19, ativou seu programa Covax-Facility remetendo 1,4 milhão da vacina da Johnson & Johnson ao Afeganistão. Segundo relato do diretor do Hospital Regional da província oriental de Paktia na divisa com o Paquistão, antes de disponibiliza-las ao povo que aguardava sua vez, ele decidiu por dever de ofício consultar a nova autoridade talibã, que o informou estarem as vacinas banidas. Isto significa que as doses recebidas serão descartadas após o vencimento de sua validade. Essa, nem o Bolsonaro, que gerencia o pior programa do mundo de combate ao coronavírus, imaginaria ser possível fazer.

O avanço talibã sem qualquer resistência faz com que caiam em suas mãos o armamento leve e pesado enviado pelos EUA justamente com a finalidade de enfrentá-lo. São bilhões e bilhões de dólares indo direto para o inimigo e de graça. No “pacote”, estão 25 aviões de ataque Super Tucano adquiridos ao Brasil.

O presidente Joe Biden foi à televisão explicar o inexplicável: por que os americanos foram pegos de surpresa pela rapidez da ofensiva adversária, por que não foi feito um razoável programa de evacuação, por que – agora se sabe – as duas décadas de ocupação nem cogitaram de reconstruir o Afeganistão e forjar-lhe uma democracia. “Era só para combater o terrorismo” disse, sem corar.

Analistas internacionais perguntam-se se este é mais um exemplo da ingenuidade ou da miopia americanas, negando-se a aceitar a interpretação do presidente Biden de que os culpados são os próprios afegãos por sua crônica incompetência. Pelo menos uma parte deles o desmente, pois acabam de novamente triunfar e expulsá-los do país que, afinal, lhes pertence.

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