Terceira via: um sonho vazio?

setembro 10, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Bandeira do Brasil estendida sobre mesa

Foto de Rafaela Biazi em Unsplash

Está difícil para encontrar substância ou conteúdo nas propostas de uma 3ª via que surgem na política brasileira às vésperas de cada nova eleição e que agora se repetem com sua velha monotonia. Uma pena porque de fato as duas candidaturas que surgem muito à frente das demais (e teóricas) possibilidades são desalentadoras.

No começo, a ideia do equilíbrio

O conceito da 3ª via surgiu como teoria econômica, representando um ponto intermediário entre o socialismo e o capitalismo. Em política significaria uma posição ideológica entre a extrema esquerda e a extrema direita.

Tratando-se de problema por demais antigo, a busca de um caminho entre os exageros dos polos sempre fez parte das disputas teóricas e reais entre as facções que compõem as sociedades humanas. Há os que advogam posições mais radicais de um lado ou de outro e aqueles que buscam a concórdia, fugindo da briga. Como já dizia Dom Pedro II nos idos de 1861, “a conciliação é o Brasil. Estamos mostrando ao mundo civilizado o caminho do entendimento, do meio termo, do governo de consenso no qual a oposição não desaparece e sim se comporta de maneira condigna” (em: O nome do presidente é Dom Pedro, volume 1, pg. 118 – do autor). Curiosamente, traduzindo sentimento similar, mais de um século depois o renomado antropólogo mexicano Héctor Díaz-Polanco em texto para o Inst. Pan-Americano de Geografia e História comentava que “o centro está sendo cada vez mais disputado”.

Modernamente, o sociólogo londrino Anthony Giddens é tido como o teórico pioneiro da 3ª via. Ideólogo do 1º Ministro Tony Blair, seu livro “The Third way”, lançado em 1998, transformou-se na bíblia do trabalhismo britânico (e da ala democrata mais progressista norte-americana) que, então, conseguia derrotar o longo reinado conservador de dezoito anos de Margaret Thatcher e John Major. Nele, defendeu a promoção de uma nova economia mista na qual se produziria uma sinergia entre Estado e Mercado, permitindo aproveitar o dinamismo da iniciativa privada no marco da livre competição enquanto o governo atuaria com base no interesse público”; uma evidente quimera, mas que à época não só seduziu como já vinha embasando, fora do Reino Unido, o discurso de políticos eleitoralmente exitosos como Bill Clinton e Fernando Henrique Cardoso. Na Argentina foi considerada como um “novo caminho” pelo presidente Fernando de la Rúa, pois compatibilizaria crescimento econômico com desenvolvimento social. Um pouco mais tarde, Emmanuel Macron construiu uma 3ª via à francesa: um liberalismo com acentos social-democratas mesclado com um gaullismo de modo a assegurar um papel central ao Estado e à figura do presidente.

Conceituado mestre (durante anos Giddens presidiu a London School of Economics), sua obra Beyond left and right - Entre esquerda e direita - é considerada leitura fundamental para entender a natureza do fundamentalismo, da democracia e da violência. Hoje, aos 83 anos, Giddens segue ativo e há pouco plasmou o conceito de 1ª digidemic (algo como A primeira Pandemia Digital), uma reflexão sobre a era digital que para ele no mundo está transformando radicalmente a saúde, a política, a cultura e os modos de vida.

Originalmente concebida como uma ideologia de esquerda que defenderia a transição para um socialismo sem a necessidade de revoluções, a 3ª via logo naufragou sob as contínuas tempestades dos novos tempos. Tony Blair, cuja década no poder logo de início viu-se às voltas com a morte da princesa Diana, trocou a proposta do “novo trabalhismo” pelos encantos do neoliberalismo ao apoiar propostas da direita direcionadas à abertura do mercado, desregulação e desestatização da economia, aliando-se a Bush nas invasões do Afeganistão e do Iraque. Quando saiu do governo, foi lembrado com carinho por Bush: “vou sentir saudades do Blair”, numa época em que os Estados Unidos e o ocidente comemoravam a vitória do livre mercado, a queda do muro de Berlim, da União Soviética e das repúblicas socialistas da Europa Oriental ademais da reunificação da Alemanha. Rapidamente se esvaíram as esperanças de paz e prosperidade. Em seu lugar vieram o genocídio de Ruanda; a guerra dos Bálcãs; as crises financeiras de México, Ásia, Brasil, Argentina; o estouro da Bolsa Nasdaq e do Banco Lehman Brothers que levou à recessão os Estados Unidos; o ataque às torres gêmeas. A década dos anos 1990 assistiu à intensificação do processo de globalização.

3ª via resiste em dois países e no Brasil

Ao sabor de tantas ondas contrárias, o conceito da 3ª via aos poucos foi sendo esquecido. Na prática, hoje tenta sobreviver pela experiência de dois países: Tunísia e Peru, além de se constituir no tema (ou na hipótese) número um do atual debate político brasileiro.

Kais Saied, um professor jejuno na política, propondo-se a restaurar os princípios da primavera árabe inaugurada pelos tunisianos em janeiro de 2011, nem bem completou dois anos no governo e, sem paciência, fechou o Congresso (primeiro por 30 dias, mas logo a medida foi renovada sem data para acabar), demitiu vários ministros junto a dezenas de funcionários mais o diretor da TV pública e o embaixador em Washington, além de colocar os oposicionistas mais notórios na prisão. Abandonando por completo os princípios da 3ª via com os quais conseguira ser eleito, parece devolver o país à ditadura, inicialmente com apoio de boa parte da população que não aguentava mais o fracasso de “n” governos que ao longo da última década mandaram às traças os princípios da Revolução do Jasmim.

Outro professor, José Pedro Castillo, vindo da empobrecida província peruana de Cajamarca e inteiramente desconhecido no restante do país, depois de derrotar por meia dúzia de votos a Keiko, filha de Alberto Fujimori, na raiz do sentimento generalizado de rejeição aos políticos tradicionais, agora tenta governar sob forte resistência da oposição. Pelo menos dois de seus ministros, Guido Bellido (1º) e Yber Maraví (Trabalho) precisam responder a acusações de terem pertencido à feroz guerrilha do Sendero Luminoso que causou cerca de 70 mil mortes nas décadas de 1980 e 1990. Apesar de ter minoria no Parlamento, o novo presidente conseguiu aprovar um voto de confiança mesmo sem tirar da cabeça o imenso chapéu de palha equatoriana que por ora se constitui na sua principal marca.

No Brasil a história destaca as infelizes tentativas com Fernando Collor e Jânio Quadros, também eleitos sob grandes esperanças de um povo que, então, já não aguentava mais os “políticos de sempre”. Desde a Proclamação da República até hoje o país teve 33 presidentes (excetuadas as curtas permanências da Junta de 30, de José Linhares em 45 e de Ranieri Mazzilli em 61), incluindo os períodos ditatoriais de Artur Bernardes, do Estado Novo de Getúlio e da “redentora” de 64.

Houve uma 3ª via antes, com o governo de Epitácio Pessoa de 1919 a 1922. Sucedendo a Venceslau Braz, voltara à presidência Rodrigues Alves que, no entanto, não chegou a tomar posse ao falecer pouco antes como vítima da Gripe Espanhola. Entrou o vice Delfim Moreira que, adoentado, teve de ser substituído. Vigorava a política do café com leite, uma prática de alternância no poder entre mineiros e paulistas, mas dessa feita não houve acordo e a solução terminou sendo um “tertius”: o paraibano Epitácio que não só governou como um melancólico autocrata, como secou o caixa do Tesouro deixando uma dívida externa explosiva e ainda ajudou na escolha do sucessor, o maior ditador que o Brasil já teve: Artur Bernardes, mineiro de Viçosa, que logo depois da posse partiu para concretizar suas vinganças pessoais, bombardeou São Paulo em 1924 e implantou o famigerado campo de concentração da “Colônia Agrícola” de Clevelândia no Oiapoque, de onde raros retornavam.

No Brasil profundo, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, tinha sua saga. Para combatê-lo, Epitácio implantou o ambicioso Programa de Combate à Seca no Nordeste, a maior obra do seu governo: duzentos açudes, quinhentos quilômetros de estradas de ferro e muito dinheiro para construção de barragens, portos e estradas, a fim de redimir de uma vez por todas uma vasta região do território nacional da miséria em que sempre vivera. O programa, sem qualquer resultado concreto e positivo, consolidou-se como o marco primeiro da indústria da seca que não mais deixou de sugar as economias da pátria.

Os brasileiros são estranhos. Ninguém esquece das soluções miraculosas que nunca dão certo, mas todos estão sempre dispostos a apostar novamente naquela criatura que, saída do nada, de repente vai resolver todos os seus problemas. O argumento é sempre o mesmo: os que aí estão já se sabe que não resolvem, então é melhor inventar alguém novo, mesmo que sem experiência, pois quem sabe dessa vez a gente acerta?

Ultimamente os postulantes da 3ª via não têm sido aceitos pelos eleitores. O exemplo mais notório é o do paulista Ciro Gomes, que fez carreira política no Ceará, candidato em três eleições desde 1998, jamais ultrapassando a proporção de 12,5% dos votos. No máximo, quem se colocou como alternativa obteve 21,3%, caso de Marina Silva em 2014 (já alcançara 19,3% quatro anos antes). Promessas como Eneas Carneiro (7,4% em 94), Garotinho (17.9% em 62), Heloísa Helena e Cristovam Buarque (6,9% e 2,7% em 66) fizeram muito barulho sem entusiasmar o renitente eleitorado que sistematicamente preferiu optar entre os dois primeiros nas pesquisas “para não desperdiçar o voto”. Este é um comportamento que, se não é tipicamente brasileiro pois se repete nos vizinhos Uruguai e Argentina ou na Colômbia, já há muito foi superado em boa parte da América Latina, onde eleições em países mais plurais, como Peru, Equador, Costa Rica ou Honduras costumam ser disputadas até o fim por vários candidatos, revelando que o povo não fica à espera de favoritos e mantém as próprias convicções ou a fé no programa do partido, independente do que for ditado pela última moda.

Um sentimento cada vez mais comum na América Latina é a desilusão generalizada, que leva ao ceticismo e à negação de tudo e de todos, traduzindo-se no que os castelhanos chamam de “voto de enojo” (de nojo). Na Venezuela e no Equador, por exemplo, a soma das opções pelo voto em branco e nulo chegou a ficar em segundo posto em eleições recentes, graças à intensa campanha em favor da plataforma pró señor nadie y señor ninguno (senhor nada e senhor ninguém).

Foi esse caldo de cultura que, em 2018, produziu um dos maiores enganos da população brasileira ao eleger um inexpressivo e pouco preparado candidato da extrema direita, o capitão Jair Bolsonaro. No 1º turno, os dois primeiros colocados tiveram 75% dos votos. Se aos brancos e nulos somássemos as abstenções, teríamos o mesmo número de votos do 2º colocado, no caso o petista Fernando Haddad, numa demonstração a mais do quanto os pleitos brasileiros são polarizados, não admitindo a concorrência de quem está fora da mainstream (a corrente principal). Apesar de tudo, Bolsonaro ganhou com um discurso de 3ª via, fortemente anti-sistema. Em seguida, ao assumir cada vez mais posições de ultradireita e cercar-se de militares, uma vez mais desmoralizou a noção inicial da neutralidade ideológica.

Os discursos de quem fala em 3ª via no mundo atual e no Brasil em particular estão a milhares de quilômetros de distância das formulações teóricas originais de Anthony Giddens, resumindo-se a tentativas de justificar qualquer caminho que seja distinto dos dois polos principais, no caso radicalizados entre a direita bolsonarista e a esquerda lulista, naturalmente na suposição de que as eleições de fato aconteçam em 22 e que os dois candidatos que por ora lideram as pesquisas não serão inviabilizados. Nesse barco embarcaram, até aqui, pelo menos cinco esperançosos políticos: João Dória, Eduardo Leite, o costumeiro Ciro Gomes e dois ex-ministros bolsonaristas – Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta. Na casa deste último, no Lago Sul em Brasília, “partidos de centro” (PSDB, Democratas, Cidadania, Verde, Podemos, MDB, DEM) reuniram-se, sem qualquer resultado, em almoço para discutir sobre “a necessidade de lançar um candidato que transite longe dos extremos representados por Bolso e Lula”. O Correio Braziliense noticiou que “partidos buscam nome para ser a 3ª via em 2022 diante do naufrágio das duas opções principais”, fazendo questão de assinalar que “o PT, além dos escândalos do Petrolão e do Mensalão, abriu as portas para o avanço de Bolsonaro com a crise econômica e política de 2016”.

Não obstante, aumenta a pressão por rotas alternativas. Apesar de tudo, ainda é indiscutível que o Brasil necessita, desesperadamente, de outra chance. Em artigo de último final de semana, Miguel Reale Júnior bate na mesma tecla: “a preocupação dos agentes econômicos e o pavor dos desempregados mostra como é temível a reeleição de Bolsonaro. Impõe-se, então, pensar com maior determinação numa terceira via que responda a esses anseios de paz, de estabilidade e de visualização do futuro”. Existe, de fato, alguma substância nestas posições, ou o Brasil está condenado – caso não seja consumido por uma nova ditadura – a enfrentar pelo menos mais quatro anos à deriva?

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