Tunísia e seus ditadores

agosto 05, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Homem com chapéu tradicional em praça na Tunísia

A orgulhosa Tunísia sempre preferiu seguir seus próprios caminhos, ao contrário de Argélia e Líbia, os confusos vizinhos. Com isso, optou por submeter-se ao menor número possível de dirigentes, fossem eles paxás, generais ou políticos em geral. Contudo, não deu sorte na vida e agora se vê ameaçada por um ainda fiel seguidor das ideias e ações de líderes como o americano Donald Trump. Trata-se do presidente Kais Saied que acaba de dar um golpe, demitindo o 1º Ministro e fechando o Parlamento.

Lembranças do Império Otomano e de Ben Ali

A história desse belo país, situado no Magreb africano às margens do Mediterrâneo com belas praias que durante anos fizeram as delícias de milionários europeus, mudou quando o Império Otomano em 1574 derrotou a Espanha que há pouco tomara várias cidades litorâneas ao reino Haféssida no califado almóada de Habu Hafes. Os turcos aí ficaram por 307 anos, até serem expulsos (em 1881) quando o país, no bojo do Tratado de Bardo, tornou-se um Protetorado Francês.

Com a independência em 1956 assumiu como presidente Habib Burguiba, um advogado formado em Paris, que gostou do cargo e só o abandonou 31 anos mais tarde. Doente, o até então todo poderoso ditador viu-se destituído por Zine El Abidine Ben Ali em 1987, sendo submetido a prisão em sua própria casa onde faleceu treze anos mais tarde. O reinado de Ali perdurou por outros 24 anos.

O povo, embriagado com a ilusão de que tinha alcançado uma tardia mas sempre esperada democracia, inundou as ruas em janeiro de 2011, surpreendendo o mundo com sua pacífica Revolução do Jasmim. Foi o estopim para a Primavera Árabe que a seguir convulsionou, sem produzir resultados efetivos, dezesseis países. Na época, tudo era festa. Para cooperar com o novo clima e com a promessa de democracia no mundo árabe, Oslo conferiu o Nobel da Paz a quatro organizações: a Liga Tunisiana de Direitos Humanos, a União Geral dos Trabalhadores (UGTT), a União dos Empregados (UTICA) e o Conselho Nacional dos Advogados, numa mensagem como que dizendo ao mundo: “estão vendo? É assim que se faz: cooperando”.

Uma década de lutas políticas intestinas, dificuldades econômicas insuperáveis pelo menos em aparência e impasses permanentes por toda parte contribuiu decisivamente para que um sentimento de frustração, impotência e revolta tomasse conta dos tunisianos. Dois governos nacionais (de Moncef Marzouki e Béji Caid Essebsi, ambos com apoio do partido muçulmano Ennahda) com sua ineficiência contribuíram apenas para reforçar a desilusão generalizada. Por evidente erro de avaliação sobre a realidade ou desconhecimento e falta de perspectiva, reportagem da revista Veja em outubro de 2011 afirmava que “por não ser assolado por divisões regionais, étnicas nem religiosas, o país é historicamente menos propenso a conflitos internos”.

Aconteceu, como se sabe, justo o oposto. De fortes raízes muçulmanas, a Tunísia sofreu duros golpes desferidos pela Al Qaeda e pelo Estado Islâmico (EI). Em março de 2015 um comando do EI atacou o famoso Museu de Túnis matando 21 pessoas entre as quais 13 turistas provenientes da Europa. Três meses mais tarde, apenas dois terroristas entraram no Hotel Riu Imperial Marhaba na famosa praia de Sousse (terra natal de Ben Ali) fuzilando a 38 hóspedes europeus. Exatamente por suas agudas diferenças de modo especial no acesso à riqueza o país entrou numa espiral de permanentes discordâncias entre os que teimavam em manter intactos os privilégios dos tempos da ditadura e os que desejavam melhores condições de vida.

Na verdade, as estruturas e os guetos de poder que dominavam a Tunísia não foram desativados. Pelo contrário, seus líderes permaneceram em postos-chave dos novos governos e o país, no fundo, não mudou. Ben Ali e sua belíssima esposa Leila Trabelsi fugiram para a Arábia Saudita (onde ele faleceu em 2019). A família Trabelsi é odiada na Tunísia por ter se apropriado de gordas fatias das riquezas do país. Ela, pouco antes de fugir com o marido, compareceu ao Banco Central de onde retirou, segundo noticiado pelo Le Monde, 1,5 toneladas de ouro com valor estimado em 45 milhões de euros. Inalcançável pelo fisco, vive hoje com os filhos em Jeddah, sendo figura conhecida no jet set internacional. Os tribunais tunisianos condenaram à revelia o casal a 35 anos de prisão e a ressarcir aos cofres nacionais cerca de 45 milhões de euros (o que não se concretizou).

O principal partido muçulmano, o Ennahda (Renascimento), de direita, nunca foi de fato governo, embora tenha participado em coalisões temporárias e atualmente comande muitos municípios. Teve 28% dos votos em 2014 e 13% em 2019. Praticamente todos os tunisianos são muçulmanos (99%). Para uma população total de 11,6 milhões, contam-se 20 mil católicos.

Eleições e novo golpe

Acompanhando as tendências globais, os partidos tradicionais foram amplamente derrotados na 3a. eleição democrática realizada para o Parlamento em 2019. Fortemente divididos entre dezenas de pequenas agremiações políticas, no 1º turno, os eleitores deram 18% dos seus votos para um candidato independente, apartidário e sem tradição política: Kais Saied, à frente de Nabil Karoui, de um partido tradicional. O concorrente pelo Ennahda ficou em 3º. No 2º turno, porém, Saied arrasou, conquistando 72,5% dos votos, mesmo sem apresentar um programa claro de governo, o que lhe custou severas dificuldades pois somente 38 do total de 220 parlamentares passaram a apoiá-lo.

Num filme mais do que conhecido e repetindo o script traçado por presidentes como Trump, Bolsonaro ou o húngaro Victor Orbán e o polonês Andrej Duda, Kais Saied de imediato começou a criticar e a insultar os partidos políticos, a mídia, as instituições públicas em geral, o Parlamento, o Judiciário, que em sua visão o impedem de fazer o que o país necessita sem, contudo, dizer o que seria. Mostrou-se ótimo para desmoralizar pretensos inimigos, mas péssimo para governar.

O povo, conduzido ao léu e vendo os problemas nacionais se acumularem, sem ter outra saída começou a achar que, quem sabe, Saied teria as soluções. Então, todos calaram em 25 de julho no momento em que o presidente demitiu o 1º Ministro e fechou o Parlamento. Disse que as medidas teriam validade por 30 dias, sendo necessárias para afinal combater o passado, o que é velho. Com isso, referiu-se uma vez mais aos tempos de Ben Ali, reafirmando que na Tunísia nada mudara após a revolução de 2011.

Curiosamente as reações têm sido débeis. Há um receio de que o temporário vire permanente e uma ainda vaga esperança de que Saied – que não é um general nem um homem de negócios ou o chefe de alguma seita qualquer, e sim um professor até hoje pacato que pode não ter no sangue o desejo de se tornar o presidente vitalício da Tunísia – volte atrás. Seus seguidores e a cautelosa mídia têm dito que as medidas de Saied objetivam uma correção na democracia e na revolução. Uma palavra que circula cada vez mais é “salvação”, que para os brasileiros tem péssimas recordações pois remete à “política de salvações” de Hermes da Fonseca entre 1911 e 1913 destinada a minar o poder das elites, mas que acabou servindo tão só substituir, pela força do Exército, os adversários políticos nos governos dos estados.

Saied seria o “salvador”, mas os piores presságios pareceram confirmar-se quando ele discursou no dia do golpe, afirmando que “tomamos estas decisões até que a paz social regresse a Túnis e até que salvemos o Estado”, condicionantes evidentemente impossíveis de se concretizarem tanto no curto como provavelmente no longo prazo. Ou seja, o professor ao que tudo indica veio para ficar, mesmo porque para ser ditador qualquer profissão serve. Os mais conscientes ainda tentam reagir, pois sabem que depois de décadas e mais décadas de ditaduras fracassadas não é retornando a elas que os problemas tunisianos serão solucionados.

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