Belarus entre a Rússia e a Europa

novembro 19, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Mapa administrativo da Belarus

Imagem sob licença Attribution-Share Alike 4.0 International, da Creative Commons, sem modificações.

Belarus – a Bielo Rússia ou, melhor ainda, a Rússia Branca – cumpre, uma vez mais, seu papel como ponta de lança para os enfrentamentos de Putin com seus inimigos de momento. Depois de guerrear com os russos no final do século XVII e início do século XVIII, nunca mais esse inexpressivo país do leste europeu afastou-se do seu poderoso vizinho do leste. Na mais recente manobra política visando a própria proteção, em abril de 1996 o país assinou com Boris Yeltsin, num raro momento de sobriedade do então presidente soviético, um tratado criando a Comunidade de Belarus e Rússia que na verdade reforçava a dependência que existia desde Lênin.

Curdos como massa de manobra

A República de Belarus surgiu em 1991 na raiz do movimento que acompanhou o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e em 1994 numa primeira eleição geral escolheu para presidente a Aleksandr Lukashenko que se apropriou do país e em abril de 2020 foi reeleito para um 6º mandato com 80% dos votos. Ainda mais que nos pleitos anteriores, o pleito foi uma fraude radical, imposta imediatamente após a candidata da oposição, Svetlana Tikhanovskaya (substituiu ao marido que fora preso), demonstrar que na realidade vencera com 60% dos votos. Até hoje nem o resultado da eleição nem o novo mandato de Lukashenko são reconhecidos inclusive pela comunidade internacional. A União Europeia (UE) impôs pesadas sanções, também referentes ao pouso forçado no aeroporto de Minsk da aeronave da Ryanair que se dirigia a Riga (capital de Letônia), a fim de deter os jornalistas Ramon Pratasevich e Sofia Sapega que estavam a bordo.

Agora que a UE decidiu aplicar um segundo pacote de restrições, abrangendo voos da companhia aérea nacional, a Belavia, e de outros países para Minsk com a finalidade de deter o fluxo de migrantes, Lukashenko decidiu reagir.

Em primeiro lugar assinou um tratado econômico e de defesa com Vladimir Putin que, além de reforçar as medidas do Acordo de Yeltsin, permitiu a realização de manobras aéreas com bombardeiros russos numa clara demonstração de apoio. E de imediato fez circular na região a notícia de que estava relaxando os controles migratórios, na prática facilitando o caminho rumo aos vizinhos Polônia, Letônia e Lituânia, o que significa acesso à UE.

A notícia espalhou-se como rastilho de pólvora por países como Iraque, Afeganistão, Iêmen, onde multidões de pessoas oprimidas e sem esperanças se agarram a qualquer oportunidade que lhes permita sobreviver. Dentre elas se destacam os curdos que, mais estruturados, estão no limite da resistência depois que o governo Trump os abandonou (após usá-los para derrotar o Estado Islâmico) e os governos nacionais os perseguem sem trégua.

O resultado é que já cerca de 5 mil migrantes se comprimem na fronteira com a Polônia e outros mais tentam romper as barreiras impostas na divisa com os países bálticos desafiando o duro inverno que recém começa e lhes impõe temperaturas de 0 graus a gradativamente inferiores, tornando as noites ao relento uma tortura.

O fluxo principal é proveniente de Istambul e Antalya na Turquia, Beirute, Bagdad, em voos operados pela Belavia ou por empresas dos países de origem, mas traz migrantes do Iraque e do Afeganistão, aos quais se somam alguns mais do Congo, do Iêmen, entre outros. Numa tentativa de frear o agudo aumento da demanda por passagens rumo a Minsk, o governo turco decidiu não aceitar passageiros com passaporte iraquiano, sírio ou iemenita, obrigando-os a voar via Dubai ou apelar para voos fretados. O custo da viagem entre Bagdá e Minsk vai de 10 a 15 mil euros, sem garantia de entrada na Polônia. Para esta semana 34 voos têm pouso previsto em Minsk (21 de Istanbul e 12 de Dubai). O governo iraquiano oferece voos de repatriamento aos que desejarem retornar. “De forma alguma voltarei ao Iraque, a uma vida sem esperanças”, declarou um refugiado que tentava furar o bloqueio em mais uma desesperada tentativa de entrar na Polônia. Ele e a maioria das demais famílias almejam prosseguir até a Alemanha.

A guerra geopolítica

A fronteira nas cidades de Bruzzi (Belarus) e Kusnika (Polônia) é o palco principal da luta pelo acesso ao ocidente. A polícia de Belarus está ajudando inclusive ao fornecer alicates para cortar as cercas de arame farpado, ao passo que a guarda polaca recebe a multidão com jatos de água gelada e cassetetes.

Para Moscou, o regime de Lukashenko – considerado o último ditador da Europa – funciona como um escudo contra a OTAN e o compensa com recursos financeiros e armas. Aí estão a Polônia onde Andrzej Duda do Partido Lei e Justiça comanda um regime de ultradireita para quem migrantes devem ser impedidos de entrar porque “espalham doenças infecciosas” e as liberais Letônia e Lituânia, membros já antigos da UE e da OTAN. Os governos polaco e lituano querem construir muros de 4 metros de altura na fronteira isolando ainda mais a Belarus, que não tem saída para o mar.

Em resposta às renovadas sanções de que seu país é vítima, Lukashenko ameaçou interromper o fornecimento de gás à Alemanha pelo gasoduto Yamal-Europa. Putin pediu-lhe para não fazer isso, jurando que Moscou cumprirá os acordos de fornecimento com os quais está obrigado por contrato. Mas nesse terreno nada é realmente definitivo ou sólido. O transporte de gás em breve passará a fluir pelo Báltico através do novo gasoduto Nord Stream 2 que permitirá tanto a duplicação do volume atual quanto a destinação direta do gás em território alemão, num by-pass às rotas que no momento cruzam Ucrânia e Belarus. Apesar dos recursos já despendidos na sua construção, novas dúvidas surgiram a partir da negativa da Alemanha em assinar o documento de certificação da obra.

Com 9,2 milhões de habitantes num território de 207,6 mil km2, a velha Rússia Branca assemelha-se ao estado brasileiro do Paraná, mas sua história é bem mais trágica, especialmente por ser forçada a ceder diante dos seus vizinhos mais poderosos. Durante a 2ª. Guerra Mundial o país foi ocupado pela Alemanha e os nazistas ativaram o Gueto de Minsk onde milhares de judeus foram mortos. Arrasado pelas forças de Hitler, viu sua população diminuir drasticamente até o 3 de julho de 1944, data da entrada das tropas soviéticas expulsando o Reich e que é hoje comemorada como sendo o dia da independência de Belarus.

O território bielorrusso é uma vasta planície com 40% ocupado por florestas predominantemente de coníferas e vastos gramados onde o bisão, um dos maiores animais da face da Terra, encontrou um ambiente ideal para proliferar. A fronteira com a Polônia estende-se por mais de 400 km, com grande parte coberta por bosques cerrados e pântanos, sem as cercas de arame farpado, o que em parte facilita a travessia para quem sabe lidar com a natureza selvagem.

Ecos de Chernobyl

Lukashenko (tal qual um Bolsonaro eslavo, acha que a Covid-19 se cura com vodka, sauna e trabalho no campo) ao assumir o governo em 1994 herdou as consequências de Chernobyl, a usina soviética que explodiu na cidade ucraniana de Pripyat (à época pertencente à União Soviética) em 26 de abril de 1986, a apenas 16 km da divisa com Belarus, o que fez o país receber 70% da radiação vazada da usina e ter 1/5 de sua área agrícola contaminada.

“Belarus é um país de bosques. Mais da metade dos seus prados no leito dos rios Pripyat, Dniepr e Soj (sic) se encontram nas zonas de contaminação radiativa. Em consequência da ação constante de pequenas doses de radiação, a cada ano cresce no país o número de doentes de câncer, de deficientes mentais , de pessoas com disfunções neuropsicológicas e com mutações genéticas. A catástrofe se converteu no mais grave acidente tecnológico do século XX.” (Svetlana Aleksiévitch, Prêmio Nobel de Literatura em 2015, em “Vozes de Tchernóbil”. Companhia das Letras, 2016.)

A orientação do governo desde o primeiro dia, seguida à risca na administração de Lukashenko, foi (e continua sendo) de que as pessoas falem disso o menos possível. Sempre negou a única solução admissível para o caso que seria a realocação das populações sob risco. Ao contrário, assumiu um discurso “positivo” direcionado para políticas de vida saudável, colocando um manto de silêncio sobre o que de fato aconteceu em Chernobyl. Pouco a pouco o povo deixou de comentar o assunto; os mais jovens, sem informação disponível, ignoram o tema e, assim, não reconhecem suas perenes consequências e muito menos debatem a realidade epidemiológica resultante da exposição permanente à radiação. Chernobyl tornou-se um tabu sob o governo de Lukashenko que, no entanto, sempre recebeu elevadas somas de dinheiro especificamente para serem aplicadas não na solução, mas sim na mitigação dos problemas deixados pela explosão. Ele é, no entanto, obrigado a identificar a “zona de contaminação” e a pagar uma ajuda financeira às pessoas que ai residem como compensação pelo risco ao qual foram expostas. Sistematicamente o governo diminui esta zona e dessa forma menos pessoas têm direito ao auxílio. Recentemente um decreto redefiniu a zona dela retirando 203 localidades com 31 mil habitantes da lista. Ou seja, os recursos da ajuda externa continuam chegando aos cofres públicos, mas cada vez menos pessoas os recebem.

Não obstante, especialistas reiteram que solos contaminados por isótopos radioativos assim permanecem por longo tempo (no caso estrôncio-90 que perdura na natureza por 290 anos; césio-137 por 300 anos; urânio, iodo-129 e plutônio por 190 anos). A vida média do urânio-238 é de 4,5 bilhões de anos; do iodo-129 chega a 15 milhões de anos. Segundo a organização Greenpeace, hoje 1,1 milhão de pessoas vive nas áreas contaminadas em Belarus. O epidemiologista britânico Chris Busby, em consonância com a posição de cientistas de todo o mundo, afirma que a exposição por longo prazo a pequenas doses de radiação é tão perigosa quanto altas doses concentradas.

Para mostrar que a vida é segura em toda Belarus, Lukashenko planeja construir uma nova planta nuclear, idêntica à de Chernobyl, na região dita de risco, embora não haja necessidade energética que a justifique.

Síntese

Os alimentos, incluindo hortaliças e frutas, continuam sendo produzidos livremente em toda Belarus e sendo compradas pela Rússia, onde também não se fala sobre esse assunto. Chernobyl nada mais é, para russos e bielorrussos, que um acidente que teria acontecido 35 anos atrás, ou seja, há muito tempo.

No centro de Minsk, a última sede formal da KGB resiste em plena atividade com suas imponentes seis colunas de frente. Por enquanto, seus oficiais apenas vigiam a chegada e o intenso movimento dos migrantes que, iludidos pelas palavras de Aleksandr Lukashenko, sem alternativa arriscam seu dinheiro para comprar um mais do que improvável bilhete de acesso a uma Polônia que não quer nem sentir-lhes o cheiro.

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