OMS: um segundo mandato para o tigray Tedros Gebreyesus?

novembro 02, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Mapa de zonas da Etiópia

Imagem sob licença Attribution-Share Alike 4.0 International, da Creative Commons, sem modificações.

Já quase encerrando seu quinquênio como Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde, o biólogo Tedros Adanom Gebreyesus viu-se obrigado a apelar para a amizade do Ministro da Saúde de um país europeu, no caso o alemão Jens Spahn que afinal concordou em formalizar o lançamento de sua candidatura à reeleição para o período 2022-2027. Para surpresa geral, em seguida a França uniu-se à proposição germânica. É que pelas normas da OMS o rito eleitoral exige que um país assuma a indicação do candidato. Normalmente (ou sempre) a iniciativa compete ao país de origem do candidato, no caso, a Etiópia que, no entanto, retirou seu apoio a Gebreyesus. Não o fez por questões técnicas ou de má administração da pandemia (embora houvesse razões para tanto) e sim por acusá-lo de estimular, inclusive financeiramente, a Frente de Liberação Popular Tigray – FLPT – atualmente em guerra com o estado etíope. Aos poucos outras 26 nações aderiram à proposição germânica sob o argumento de que não se justificaria, em meio a novas ondas da pandemia pela Covid-19, trocar o comando técnico internacional personalizado no Diretor Geral da OMS. Além de outros 15 países europeus (Portugal e Espanha entre eles), à última hora mandaram suas cartas formais pró-Gebreyesus apenas dois países das Américas (os caribenhos Barbados e Trinidad & Tobago) e três africanos (Botswana, Quênia e Ruanda). Estados Unidos, China, Rússia e Brasil permanecem calados.

Milenares guerras étnicas

Abissínios (atuais etíopes) confundem-se com as origens da humanidade. Numa excelente síntese para o site “Outras Palavras”, Fernando de Ayala recua a história a seus primórdios, 3,2 milhões de anos atrás, quando Lucy, a mais antiga ancestral humana, nascida de mãe primata, ergueu-se sobre os dois pés e começou a caminhar em Hadar no Vale de Awash a 159 quilômetros daquela que hoje é Adis Abeba, a capital da Etiópia. Desenvolvia-se o Australopithecus Afarensis.

Sempre pioneiros, os etíopes foram o segundo povo (depois dos armênios) a assumir o cristianismo ortodoxo como religião no ano 330. Não por outras razões, embora o país atualmente conviva com mais de 80 etnias, cristãos – incluindo católicos e protestantes – persistem sendo a maioria: 61,5% da população, seguidos por muçulmanos sunitas com 34,4%. A convivência entre as religiões é uma característica do país, mesmo porque é muito comum em cada família a adoção ao lado da fé principal de crenças animistas (tradicionais). Ou seja, as quase permanentes guerras fratricidas que acompanham a Etiópia não ocorrem por motivos religiosos e sim por diferenças raciais, acumuladas ao longo dos séculos com base em etnias de origem semíticas para Amharas e Tigrays; e cushíticas para Oromos e Somalis, povos que em conjunto respondem por 80% dos habitantes.

Historicamente, imperadores da etnia Amhara reinaram até 1974 quando Hailé Selassié foi derrubado por uma Junta Militar comunista denominada de DERG. Na época, Somalis (6,2% da população), Tigrays (6%) e Oromos (34%) chegaram a ser escravizados. O domínio da ditadura popular de esquerda encerrou-se em 1991 quando, após o colapso do regime soviético a partir de Moscou, o presidente coronel Mengistu Hailemariam fugiu para o Zimbabwe onde vive até hoje.

Não obstante o país tenha se transformado em um sistema federal de governo sob uma coalizão de quatro partidos étnicos, o domínio da máquina pública entre 1991 e 2018 coube aos Tigrays e à sua FLPT que mesmo sendo minoritária ocupou as posições administrativas mais importantes e controlou o Exército, reprimindo pela força qualquer oposição.

Nobel da Paz para Abiy: um erro

De 2005 a 2016, Tedros Gebreyesus (nascido em Asmara na Eritreia, quando ainda pertencia à Etiópia) foi inicialmente Ministro da Saúde e depois Ministro de Relações Exteriores do governo tigray, num período em que se sucederam episódios de sangrenta repressão militar nas ruas da capital e outras cidades grandes do país, sufocando manifestações contrárias principalmente das etnias Oromo e Amhara. Para Tedros não havia escolha: ou apoiava (e agia) o governo de sua raça ou ficava de fora.

As eleições de 2017 provocaram uma radical mudança de enfoque interno ao eleger como Primeiro-Ministro o jovem engenheiro militar Abiy Ahmed Aly (45 anos), nascido na província de Oromia. Dois anos mais tarde surpreendeu o mundo ao ser laureado com o Prêmio Nobel da Paz por ter sido capaz de encerrar uma guerra que já persistia por 20 anos com a vizinha Eritreia.

O grosseiro erro de avaliação do comitê de julgadores de Oslo (acusado de fazer indicações superficiais baseadas em influências políticas de ocasião) não demorou a ficar claro a partir do momento em que Abiy primeiro formou o novo “Partido da Prosperidade” com base em uma “coalizão multiétnica” que excluiu a FLPT e rapidamente conduziu a Etiópia a uma violenta guerra com características de revanche contra os Tigrays.

Após um mês inicial com bombardeios que forçaram milhares de pessoas a fugir rumo ao Sudão, começou a reação da FLPT que, comparativamente, possui forças de elite mais bem treinadas com base nos 27 anos em que esteve no poder. O resultado é que já conseguiu ampliar a presença tigray no país, que não possui acesso ao mar, ao ocupar as cidades de Dessie e Kombolcha, esta última muito importante por ser uma rota para o porto do vizinho Djibouti, permitindo assim abastecer suas forças, uma vantagem que pode ser decisiva. Diante da possibilidade de invasão da capital Adis Abeba pelos “rebeldes”, Abiy já está se preparando para tentar defendê-la.

A reeleição de Tedros

Na primeira eleição pela OMS em 2017 a União Africana apoiou integralmente o nome de Gebreyesus, mas agora apesar de se sentirem gratos pelas vacinas recebidas, os países do continente não querem contrapor-se ao governo de Abiy Ahmed e certamente não votarão num seu inimigo. Na Assembleia Geral de maio de 2022 é exigida uma maioria de 2/3 dos votantes. Havendo um só candidato o processo deverá ser repetido até que, pragmaticamente, esta maioria seja alcançada.

Não se esperava muito da gestão atual do etíope, o primeiro não-médico a ocupar a Direção-Geral da Saúde. Ele, após demorar dois anos para debelar a epidemia de ebola no Congo, viu-se obrigado a fazer frente à terrível pandemia do “coronavírus chinês” sob terrível pressão da administração Donald Trump, que exigiu investigações cada vez mais intrusivas baseadas numa afirmativa “fake” de que o vírus fora produzido em laboratório e logo acusando Tedros de ser um mau gestor e de estar encobrindo as evasivas da China, além de suspender o financiamento norte-americano para a OMS. O português António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, optou por dar sustentação a Gebreyesus, mesmo não confiando em sua capacidade técnica, apostando na derrota eleitoral de Trump nos EUA que afinal aconteceu. Com Joe Biden a tempestade passou.

Herdado da gestão anterior, o programa de ”cobertura universal em saúde” nunca de fato decolou, contentando-se em dar o apoio esperado à linha de medicina privada via planos de saúde que passou a ganhar mais e mais mercados. Tradicionais e sólidos programas de saúde pública como os do Reino Unido e Espanha perderam apoio e os dilemas da área de financiamento da OMS (dominada pela presença e pelo dinheiro da Fundação Gates de Bill e Melinda Gates, apesar da separação do casal) não foram, na administração de Tedros, sequer discutidos com alguma profundidade.

Com a gigantesca produção de vacinas por empresas particulares e em alguns casos estatais, como na Rússia, China e Cuba, formou-se um mercado financeiro nunca visto. Vacinas a pelo menos 10 ou 15 dólares a dose disputadas por vezes no tapa por governos de todos os países do mundo, criaram alguns trilionários e aumentaram as desigualdades ao negarem o fornecimento aos países que não tinham como pagar os imunizantes necessários para suas populações. A OMS com Tedros apelou para o mecanismo Covax Facility destinado a proteger os países pobres, mas somente em fevereiro de 2021 as primeiras doses chegaram à Costa do Marfim e ao Gana. A ideia de um “multilateralismo social”, no entanto, passou a encontrar resistência. Uma vez que “social” não é “de graça”, o programa quase afundou quando a Índia abandonou o barco (a Biofarm Company em Nova Delhi era a principal fornecedora do Covax Facility), concentrando toda a produção para sua própria população a fim de fazer frente à explosão do coronavírus no país. A isso se juntaram os países mais ricos, a começar pelos EUA com a estratégia “American First” de Trump, que num entendimento direto com os laboratórios produtores compraram até antecipadamente os estoques disponíveis de vacinas. Agora é que volta a acontecer uma redistribuição, mas os dados de cobertura vacinal por país revelam uma iniquidade gritante.

É evidente que Tedros Gebreyesus não é, por si só, culpado de tantas dificuldades, devidas basicamente aos mecanismos falhos e insuficientes de coordenação global que a ONU possui, mas é fato que a posição por ele ocupada deveria caber a alguém bem mais preparado, “mais forte”. Dar-lhe mais quatro anos porque, afinal das contas, ele já está no posto, e porque de um ilustre desconhecido tornou-se a face do combate global à pandemia, não é justificativa suficiente. Ao que tudo indica, a ONU e a Organização Mundial da Saúde estão desperdiçando uma oportunidade única para trocar o comando do combate à Covid-19 dando-lhe mais conteúdo e eficiência. A África que nos desculpe, mas, se nem ela está disposta a apoiar seu candidato, a troco de que santo deveriam os demais continentes arriscar-se?

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