Mutilação feminina poderá ter um fim?

abril 08, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional. Doutor em saúde pública.

Martelo de juiz

Em Nairobi, capital do Quênia, a mais alta Corte nacional acaba de recusar permissão para a prática conhecida como Mutilação Genital Feminina (MGF) mesmo que com o consentimento de adultos, por considerar que não traz qualquer benefício à saúde física ou mental de suas vítimas. O país, situado na África oriental e subsaariana, às margens do oceano Índico, tem 45 milhões de habitantes, dos quais 11% são muçulmanos (a maioria – 82% - é composta por cristãos, basicamente protestantes). As três juízas que assinaram o parecer final, Lydia Archode, Kanyi Kimono e Margaret Muigai, rebateram as críticas dos advogados da causa (que diziam defender direitos das mulheres que não poderiam ser tratadas como se crianças fossem), argumentando que ninguém pode escolher livremente submeter-se a ações danosas que em alguns casos podem levá-las à morte.

Com isso, o Quênia junta-se a 25 outros países africanos que possuem leis, sistematicamente sem qualquer resultado efetivo, criminalizando a MGF. O presidente Uhuru Kenyatta entusiasmou-se e previu que seu país estará livre do problema em 2022, mas até os grupos mais otimistas como o das mulheres ativistas de direitos humanos dizem que esta não é uma meta realista devido ao peso da tradição e à alta ocorrência em regiões remotas e nas periferias das grandes cidades. Estima-se que 200 milhões de meninas e mulheres ao redor do mundo foram submetidas a este tipo de agressão que envolve a remoção parcial ou total da genitália externa feminina (clítoris e lábios). Em sua forma mais agressiva, em geral feita por praticantes populares sem formação profissional, por vezes usando uma gilete e sem anestesia, tudo é suturado deixando apenas uma abertura para dar vazão à urina e à menstruação. As mães costumam levar as filhas entre 4 e 10 anos de idade, mas é comum que se faça o procedimento (conhecido tecnicamente como excisão, infibulação, clitoridectomia, circuncisão feminina) na adolescência como um preparo tido como fundamental para um possível casamento e em alguns casos para simular virgindade.

É extremamente comum em toda África e em parte da Ásia (especialmente na Indonésia) e do Oriente Médio, mas na Europa e nos Estados Unidos pode ser detectada em famílias migrantes. Embora seja uma prática típica entre muçulmanos, não é rara sua adoção por cristãos, principalmente por seguidores do ramo coopta no Egito, ortodoxos na Etiópia, protestantes e católicos no Sudão e no Quênia. Em dez países pelo menos 65% das mulheres sofreram MGF. Pela ordem: Guiné (97%), Egito, Sudão, Serra Leoa, Eritréia, Mali, Burkina Faso, Gâmbia, Mauritânia, Etiópia. No total, entre 3 e 4 milhões de mulheres em 31 países serão submetidas a algum tipo de MGF este ano. No Brasil não há casos relatados e na América Latina tem se verificado em grupos indígenas colombianos. Dentre várias religiões, o hinduísmo e o budismo a rejeitam, mas no sudeste da Ásia a infibulação (extração dos órgãos genitais seguida de sutura) tornou-se frequente a partir da expansão da escola “shafi” – a segunda mais seguida na jurisprudência islâmica – que a considera obrigatória. Em algumas sociedades islâmicas é um requerimento religioso sem ser um dogma, embora a prática não seja adotada por boa parte do Islã. “Fatwas”, que são decretos emitidos por altas autoridades religiosas têm sido lançadas, algumas proibindo-a, outras favorecendo-a. Quando visam objetivos negativos as “fatwas” assemelham-se a verdadeiras pragas. Em geral, tanto autoridades xiitas quanto sunitas têm oferecido dura resistência à aprovação de legislações nacionais restritivas da MGF, mesmo diante de provas de sua inutilidade e dos danos psicológicos e físicos que pode causar.

Com base na liberdade das mulheres para tomar decisões sobre o seu próprio corpo, duas entidades da ONU, a UNICEF dedicada à infância e o FNUAP, Fundo para populações, implementam um Programa para Eliminar a Mutilação Genital Feminina a fim de proteger direitos, a saúde e o bem-estar de mulheres e meninas, consagrando a data de 6 de fevereiro como o Dia Internacional de Tolerância Zero para MGF. A Convenção Europeia para Prevenção e Combate da Violência contra a Mulher e Doméstica de agosto de 2014, conhecida como Convenção de Istambul, criminaliza em seu artigo 38 a “qualquer mutilação de toda ou parte da lábia ou do clítoris”. No Egito, por exemplo, há décadas a MGF está fora da lei. Contudo, permanece em 9 de cada 10 crianças e jovens, feitas por praticantes informais, as Dayas. Diante do grande volume de problemas, como hemorragias abundantes que podem levar à morte, dores intensas, formação de cistos, infecção e, posteriormente, afetando as relações sexuais e o parto, cada vez mais as mulheres vêm sendo aconselhadas a realizar os procedimentos com médicos. Algumas organizações de proteção dos direitos femininos na Europa, ao constatarem a frequência com que famílias de migrantes viajam para a terra natal a fim de submeterem as filhas à MGF, igualmente sugerem que diante de sua inevitabilidade os médicos deveriam fazê-la, se não no sistema público de saúde, nas suas clínicas para as que podem pagar os honorários e o atendimento. A Academia Americana de Pediatria (APAc) discute a possibilidade de autorizar uma “circuncisão leve” em casos específicos.

Tradição e o poder masculino

Anos atrás quando estive na África fiquei muito impressionado ao constatar a longuíssima distância que separa os sexos em termos de poder e de autonomia. Eram tempos da “doença maldita”, como era conhecida a Aids e a poligamia masculina valia para toda a sociedade. Os maridos morriam jovens e as viúvas tinham um só destino: incorporar-se ao clã de um outro homem da família ou de alguém designado pelo curandeiro. Para isso era obrigada a percorrer uma autêntica via crucis, submetida a “rituais de purificação” e, mesmo assim, o irmão mais velho do marido ou um tio qualquer só aceitava a ela, nunca aos filhos. Caso recusasse, a própria família a renegava e esquecia, sobrando-lhe um único caminho: a prostituição, enquanto os filhos perdiam-se nas ruas, cada um ou cada uma por si.

Não obstante e embora a ONU afirme que ao longo dos últimos 30 anos a prevalência da MGF baixou de 1 a cada 2 para 1 a cada 3 mulheres, os efeitos de suas iniciativas não têm conseguido superar a força da tradição e o predomínio quase absoluto dos homens nas relações de gênero especialmente na África e em partes da Ásia. As primeiras referências podem ser encontradas em papiros gregos de 163 A.C. Hoje, há pelo menos dezenove práticas prejudiciais para a mulher nessas sociedades, envolvendo entre outras os ritos de iniciação sexual, feitiçaria, marcas de identificação (como se gado fossem), modificações do corpo como o alongamento do pescoço, casamento infantil, preferência por filhos homens o que leva a que fetos femininos sejam abortados, além da MGF.

Waris Dirie, modelo, atriz e ativista de direitos humanos somali, ela mesma infibulada quando criança, tornou-se Embaixadora de Boa Vontade do FNUAP/ONU para atuar em prol da erradicação da FGM. Ela relata as dores tremendas e os problemas psicológicos que o procedimento acarreta e fala das meninas que comumente são indesejadas, eliminadas, dadas, trocadas ou vendidas. Os pais contratam o casamento com um homem mais velho assumindo o compromisso de entregar-lhe, mediante um pagamento, a filha quando tiver a primeira menstruação, época em que ela passa a ser considerada uma pessoa adulta.

“Nenhum homem aceitará uma noiva que não tiver sido circuncidada” diz uma mãe sudanesa. Essa é a garantia da virgindade e de que ela não tentará trai-lo, inclusive porque seus desejos por sexo foram apagados quando da operação. Nas relações sexuais do casal, o prazer torna-se uma prerrogativa do homem.

Em julho de 2.020, ainda com Ernesto Araújo como Ministro de Relações Exteriores, a representação brasileira na ONU, empenhada em retirar as expressões “educação sexual” e “saúde sexual e reprodutiva” de qualquer texto em discussão supostamente por temer que isso mais adiante justificaria resoluções favoráveis ao aborto, votou contra a aprovação de um texto proposto por países africanos para banir a mutilação genital feminina, conforme divulgou o jornal El País em matéria com o título de “Cruzada ultraconservadora do Brasil na ONU afeta até resolução contra MGF”.

Independente do nome pelo qual é conhecida, a MGF é um barbarismo (não no sentido linguístico que dá à palavra o significado de incompreensível e sim como algo atroz, cruel, bárbaro) cometido por motivos religiosos ou de absurda tradição visando perpetuar o domínio masculino. Como tal, precisa ser combatida não só pelos grupos que defendem as posições das mulheres na África e no sudeste da Ásia, mas por parte de ativas linhas de militância feminista em todo o mundo, o que certamente não abstrai o papel que devem ter nessa luta as silenciosas organizações brasileiras do ramo.

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