Itália: caos político gera governo improvável

março 13, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Bandeira da Itália

Sem dúvida Itália e Brasil guardam grandes afinidades quando o que está em exame é a qualidade e a moral de seus políticos, vítimas e agentes de uma corrupção sistêmica ou a baixa resistência diante do implacável ataque do novo coronavírus e da doença que causa: a Covid-19. Afinal, vem de Milão a fonte inspiradora para a nossa Lava Jato. As semelhanças, no entanto, para o bem e para o mal, costumam esgotar-se por aí. A pátria de Dante e de Michelangelo, apesar de seus desencontros, mantém-se neste começo do século XXI como a 3ª. economia da zona do euro, superada apenas pela Alemanha e pela França. E continua a produzir arte e cultura para abastecer o mundo.

2021 entra para a história como o ano em que o presidente Sergio Mattarella recebe no Palácio Quirinale o economista jesuíta Mario Draghi, 73 anos, nomeando-o como o 44º Primeiro-Ministro (PM) da Itália desde que a República passou a ser o regime de governo logo depois do término da 2ª. Guerra Mundial em 1946. É, na verdade, o 87º a ocupar o posto que em 1861 coube a Camillo Benso - Conde de Cavour -, à época pertencente à “Direita Histórica”, considerado o Pai da Unificação italiana. Draghi não pertence a qualquer partido político; é um tecnocrata defensor do euro que até há pouco era o presidente do Banco Central Europeu.

Mattarella, hoje aos 79 anos de idade, chegou a cogitar a convocação de novas eleições logo depois que o PM precedente Giuseppe Conte demitiu-se ao não resistir à traição cometida por Matteo Salvini, líder da Liga, de extrema direita que, embora compondo sua administração como vice-ministro, pediu ao Parlamento um voto de não confiança por acreditar que seria eleito como novo “premier”. A Itália está exausta com eleições legislativas que nada resolvem, dada a equivalência relativa entre as três principais forças. Conforme a mais recente pesquisa de opinião – a aliança de direita e ultradireita composta pela Liga Norte (fascista), Forza Italia do capo Silvio Berlusconi e Irmãos da Itália tem 37%; os populistas do Movimento 5 Estrelas fundado pelo palhaço Pepe Grillo 29% e a esquerda com o Partido Democrático e os Livres e Iguais (LeU) 23% das preferências. Restam os que mantém posição centrista, reunidos no Itália Viva que apoiam um ou outro dos blocos dominantes, mas sem influência decisiva. Todas as várias votações recentes não conseguiram dar a maioria para uma delas e nenhuma aliança minimamente sólida tem permitido a qualquer dos grupos governar em paz. Em função desse permanente quadro de incertezas e de brigas incessantes, o povo votou, em referendo realizado em setembro do ano passado, a favor da redução de cadeiras no Parlamento em 1/3 já para a próxima legislatura. A Itália possui o terceiro maior parlamento da Europa, depois do Reino Unido e da França. Os deputados passarão de 630 para 400 e os senadores de 315 para 200, proporcionando importante economia de despesas para os cofres públicos.

O fracasso da Mani Pulite

A operação “Mãos Limpas” (Mani Pulite) realizada por procuradores que montaram uma Força Tarefa no Ministério Público de Milão, entre 1992 e 1996 levou ao fim a 1ª. República Italiana (1948 a 1994) e fez desaparecer os grandes partidos então dominantes, acabando principalmente com a Democracia Cristã (que governara o país por três décadas e meia desde o fim da guerra) e o Partido Socialista. 2993 mandatos de prisão foram expedidos, mas com o passar do tempo 70% dos réus tiveram seus processos prescritos. Doze destacados políticos ou capitalistas suicidaram-se. Segundo Alberto Vannucci, professor da Universidade de Pisa, “a operação que inspirou a Lava Jato foi um fracasso e criou corruptos mais sofisticados”. Pressionada e acuada, a Força Tarefa em dois anos e dez meses investigou e condenou alguns dos mais altos escalões da política e do empresariado até ser desmembrada e afinal desaparecer quando o Congresso acatou a mudança do artigo 111 da Constituição em resposta ao movimento “garantista” para assegurar o que consideraram ser uma “razoável duração dos processos com formação de provas em contraditório”.

Acusações de corrupção passiva acabaram em absolvição e arquivamento, fazendo os próprios promotores concluírem que “juízes não conseguem acabar com a corrupção”. Em mais de uma visita a Curitiba, no auge do entusiasmo cívico pela Lava Jato, procuradores como Piercamillo Davigo chamaram a atenção de Sergio Moro e de sua equipe para o mais do que provável destino da operação brasileira.

A figura de maior destaque ao longo da Mani Pulite, Antonio di Pietro teve, aliás, um destino muito parecido ao de Sergio Moro, embora mais espetacular. Em 6 de dezembro de 1994, ao término de uma audiência no Tribunal de Milão, di Pietro tirou a toga diante dos surpresos colegas e do público, dizendo: “saio de fininho e com a morte no coração”. No final, os magistrados tentavam investigar Silvio Berlusconi e suas empresas, enquanto recebiam ameaças de morte de terroristas da Falange Armata. Originário da Democracia Cristã, di Pietro tornou-se Senador da República, criou o partido Itália de Valores e nos últimos sete anos tem atuado como independente. No Brasil, de forma quase unânime políticos, administradores e empresários se uniram buscando eliminar do mapa quaisquer resquícios da Lava Jato, aproveitando-se em parte dos erros cometidos pelo seu líder, ex-procurador Sérgio Moro, que aceitou um cargo de ministro no novo governo brasileiro, abrindo a guarda para permitir sua defenestração e consequente desmoralização pelo grupo no poder.

Tanto no caso italiano quanto no brasileiro, a tentativa de líderes da equipe profissional de aproximação posterior com a política acabou contribuindo para o esgotamento das esperanças de que os ganhos obtidos com as operações anti-corrupção fossem aproveitados. A lição da “Mãos Limpas” é de certa forma trágica, pois permitiu a ascensão de Silvio Berlusconi e o aperfeiçoamento dos atores, pelo uso de métodos mais sofisticados e imunes ao controle legal.

O ataque aos imigrantes

Uma sociedade profundamente conservadora e reacionária emergiu na Itália moderna, apesar da dura experiência do país ao longo da 2ª. Guerra sob a batuta de Benito Mussolini. O confronto da direita fascista com as demais forças presentes no cenário político nacional retornou com toda força neste início de século XXI, assegurando sua participação no governo em posições de grande destaque.

Atualmente o rodízio de ocupantes do posto de 1º Ministro se faz a cada quatorze meses e as perspectivas para Mario Draghi é de que permaneça no máximo por dois anos. Os exemplos de mandatos mais longos não são muitos na Itália. Excetuando-se o caso de Benito Mussolini do Partido Nacional Fascista que reinou sem contestações durante 20 anos e 9 meses (de 3/10/1922 a 25/7/1943), pode-se contar nos dedos os que conseguiram governar por algo mais do que três anos: os democratas-cristãos Amintore Fanfani, Aldo Moro, Giulio Andreotti; o socialista Bettino Craxi e, pela agremiação O Povo da Liberdade, Silvio Berlusconi, o mais longevo, em três períodos entre 1994 e 2011.

O independente Giuseppe Conte, que acaba de sair, dois anos atrás nomeou Matteo Salvini da Liga como Ministro do Interior, permitindo que ele perseguisse aos migrantes que em barcos precários tentavam acessar a costa italiana. Agora que seus duríssimos decretos anti-migrantes já foram revogados, o Senado autorizou a abertura de processo contra ele por conta da não autorização para um barco da ONG espanhola Open Arms (Braços Abertos) com 150 imigrantes que, proibido por Salvini de aportar e sem alimentos entrou em situação crítica até que, em desespero de causa e após a negativa do comandante em seguir para a Espanha devido à distância, na última hora foi salvo por uma autorização da Justiça permitindo ancorar em Lampedusa. Também em outros casos e em relação a migrantes informais em solo italiano, os fascistas negaram qualquer tipo de apoio, inclusive de caráter humanitário, transformando o Mediterrâneo e os guetos em terra em verdadeiros cemitérios.

Governo de União Nacional

Não é a primeira vez que se faz a tentativa, mas desta feita o presidente Mattarella ajudou Mario Draghi nas conversas com os que dizem apoiá-lo. Ao lado de Draghi, no que se diz ser uma autêntica colcha de retalhos cuja viabilidade será constantemente colocada à prova de ora em diante, estão o Movimento 5 Estrelas, o Partido Democrático, o esquerdista LeU, o centrista Itália Viva, o conservador Força Itália e na extrema direita a Liga de Salvini.

No Ministério já empossado destacam-se Luigi di Maio (5 Estrelas) que continua como ministro das Relações Exteriores, Giancarlo Georgetti da Liga como ministro da Indústria, Roberto Speranza do LeU mantido no Ministério da Saúde pelos bons resultados que vem obtendo e Roberto Cingolani, físico de renome no novo Ministério da Transição Ecológica, uma aposta pessoal de Draghi.

O desafio maior, além da pandemia que já causou quase 100 mil mortes nesse país de 60 milhões de habitantes, é a recuperação da economia, pressionada por uma queda de 8,9% do PIB em 2020. Apenas 2% da população já foi vacinada devido a atrasos na entrega das vacinas. A aposta para responder aos que consideram óbvio um novo fracasso pelas evidentes incompatibilidades entre aliados de ocasião que só desejam abocanhar nacos do poder e do orçamento nacional e pela óbvia dificuldade para executar em dois anos as reformas necessárias e prometidas que normalmente exigiriam um tempo cinco vezes maior, está no forte apoio da União Europeia que através do seu Fundo de Recuperação prevê liberação de 209 bilhões de euros – o equivalente a quase 1,4 trilhão de reais – durante os próximos seis anos.

Com esta soma, a maior oferecida pela EU aos países do euro que lutam para superar a recessão produzida pela endemia, Draghi espera saciar o apetite e controlar as disputas ideológicas das múltiplas forças que dividem o governo. Para isso, deixará a austeridade de lado, investindo no que chama de políticas econômicas e monetárias expansivas. Ele defende uma “intervenção total”, tomando como exemplo a reforma há pouco operacionalizada pelo governo da Dinamarca. Eleito recentemente para a Academia das Ciências do Vaticano, Draghi, cujos estudos foram feitos em colégios jesuítas, confia igualmente numa ativa sustentação por parte da Santa Sé, certo de que o papa Francisco acrescentará a Itália à sua lista de causas impossíveis.

Tags: [Itália, Política]