Militares no poder... em Myanmar

fevereiro 09, 2021.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Pôr do sol em Bagan, Myanmar

Autogolpe militar

Protestos de estudantes e do pessoal das companhias de transporte aéreo contra o novo golpe de Estado desferido pelas forças militares de Myanmar, a antiga Birmânia, após três dias nas ruas ganham cada vez mais adeptos para o “Movimento de Desobediência Civil”, não violento. O general Min Aung Hlaing fez um pronunciamento pela TV para o país dizendo que organizará novas eleições e entregará o poder para os vencedores, mas outros generais e muitos “mandos médios” das três forças clamam pelo uso de suas armas, custe as vidas que custar. Espera-se que não se repita o massacre de 1988, quando a repressão da soldadesca provocou mais de 3 mil mortes. Lá, como em muitas partes do mundo, os militares pensam que pelo fato de disporem das armas só eles são capazes e podem governar uma nação. Quem entendeu bem este fato foi o ditador líbio Muammar Khadafi que nunca teve Forças Armadas com medo de que elas o derrubassem. Substituiu-as por milícias, recrutadas no subsaara, que se tornaram modelo por sua crueldade e eficácia.

Nas eleições de novembro último a Liga Nacional para a Democracia – LND – da Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi venceu de forma arrasadora, com mais de 80% dos votos. Observadores internacionais e nacionais declararam, apesar de que em 6 dos 14 estados as minorias locais não tenham podido participar, que a eleição foi limpa e os resultados são incontestes. Não obstante, o Tatmadan – nome pelo qual os militares são identificados no país – copiando o comportamento de Donald Trump declarou que houve fraude massiva e não reconheceu os resultados. Assim, em 1º deste mês de fevereiro simplesmente colocou os tanques nas ruas, prendeu Sun Kyi, o presidente mais os ministros e diversas figuras de destaque da LND na capital Naypydaw, em Rangun e onde mais achou necessário, entronando o General Min Aung, Chefe do Estado Maior do Exército, na presidência.

Não era preciso tanto. O Tatmadan sempre esteve no poder, embora nos últimos cinco anos tenha assumido um regime híbrido no qual Sun Kyi tornou-se ministra das Relações Exteriores e Conselheira Geral do Estado. 25% das cadeiras no Congresso estão reservadas para militares, além de quatro ministérios relevantes e qualquer projeto de alteração da Constituição exige 75% dos votos e, caso passe mesmo assim, o comando militar detém o poder de veto. Com tantos privilégios, na verdade os generais deram um autogolpe visando apenas calar a dócil, mas barulhenta oposição.

A velha capital, Rangun, é a maior cidade com 5,4 milhões de habitantes (o país tem uma população de 51,9 milhões e faz fronteira com Índia, Bangladesh, China, Tailândia e Laos), mas em 2005 o ditador de plantão num acesso de megalomania descerrou a placa de inauguração de Naypyidaw, a nova capital numa área maior que a de New York, onde tudo é gigantesco e lindo, contrastando com o silêncio de suas amplas avenidas construídas para possibilitar o pouso de aviões caso necessário por alguma emergência política. Shoppings, clubes de golfe, um zoo com ar refrigerado e pinguins, há de tudo, menos gente nas ruas ou compradores nas lojas. Situada a mais de 300 km de Rangun, é algo bizarro num dos mais miseráveis países da Ásia. Não há praças e muito menos cidades ou aldeias em volta, o que faz de Naypydaw um lugar para burocratas diferente de outras com propostas similares, como Astana no Kazaquistão, Oyala na Guiné Equatorial, Gbadolite no Congo ou Brasília.

Ópio e a proteção chinesa

Em 1962, quatorze anos depois da independência do jugo britânico, um golpe de estado dado pelos comunistas jogou a antiga Birmânia num regime militar que perdurou até 2011, quando o poder passou a ser repartido com uma administração civil, até agora. A revolução açafrão (a cor dos robes dos monges) de 2007 foi reprimida a ferro e fogo pelos militares. No ano seguinte, de triste lembrança pois o ciclone Nargis matou 140 mil pessoas aprofundando a miséria da população, os políticos aprovaram uma nova Constituição.

O nome do país, modificado em 1989 quando passou do inglês Burma (Birmânia) para o atual Myanmar, é uma maneira de esquecer a longa tradição de produção e consumo da heroína a partir do ópio fornecido pelos imensos campos de papoula que formam a paisagem principalmente do estado fronteiriço de Shan. Foi-se a época do Triângulo Dourado que concentrou a oferta da droga na região da confluência dos rios Mekong e Ruak na tríplice fronteira formada por Tailândia, Laos e Birmânia, até que o Afeganistão dominou esse mercado e hoje produz cerca de 65% de toda a heroína consumida no mundo. Mas, com os campos de Shan, Myanmar ainda responde por 12,5% deste total, estimando-se (segundo a UNODC, agência da ONU) que o comércio ilegal do ópio renda em torno de 1 bilhão de dólares ao ano para os traficantes protegidos pelo governo de Naypydaw.

A China considera que Myanmar está em seu quintal e durante toda a fase do poder nas mãos do Partido Socialista tornou-se o único país a apoiar o regime birmanês, mesmo tendo este se transformado em um pária internacional. Resoluções do Conselho de Segurança da ONU condenando Myanmar são sistematicamente bloqueadas por Pequim, como ocorreu uma vez mais na última semana (condenação do golpe) e no episódio do genocídio do povo rohingya.

Em sua última viagem ao exterior às vésperas do surgimento da Covid 19, Xi Jinping esteve em Naypydaw. Na pauta, os acordos para o Corredor China-Myanmar, um mega projeto para uma estrada de ferro conectando a província chinesa de Yunnan com um novo porto de águas profundas em Kyaukphyu na Baía de Bengala, o que facilitaria o desejado acesso comercial chinês ao Estreito de Málaca. Uma extensa rede de dutos pelos quais fluiriam petróleo e gás também deverá ser incrementada. A via férrea cruzaria boa parte do território birmanês em áreas onde diversas minorias são predominantes, incluindo a província do ópio (Shan) e a área muçulmana de Rakhine, o que tem motivado duros protestos dos povos atingidos.

Budistas em guerra

Embora a Constituição não admita o predomínio de qualquer religião, sobre outras, pelo menos 80% da população de Myanmar é budista, em princípio dedicando suas vidas a alcançar o nirvana, uma condição de extrema paz. O princípio da não violência é central, mas quando o país superou o período de mais de cinco décadas de ditadura militar e iniciou a transição política em 2011, surgiu uma vertente ultranacionalista pregando o ódio anti-islâmico sob o comando do monge Ashin Wirathu, um praticante do ramo Teravada do budismo que vive no mosteiro Ma Soe Yan em Mandalay (a segunda cidade mais populosa) e é conhecido como sendo o Bin Laden budista. Contando com a proteção dos militares, os monges atacaram as comunidades muçulmanas do estado de Rakhine, uma campanha baseada na destruição de lares, estupro, tortura e assassinatos que provocou a migração forçada de 700 mil rohingyas (70% da população) para a vizinha Bangladesh. O exército usou o nacionalismo radical budista para perseguir Sun Kyi e seus seguidores (além de muitas das 145 etnias existentes), mas ela quando fez os acordos com os militares e passou a integrar o governo negou-se a condenar o que se considera o massacre do povo rohingya, o que quase a fez perder o Nobel. Ela chegou a defender, em sessões do Tribunal Internacional de Justiça em Haia os generais birmaneses da acusação de genocídio.

Durante os ataques em Rakhine, monges budistas eram vistos usando uniformes militares ou jeans sob seus robes, agredindo, matando, estuprando muçulmanos. Respondendo a questionamentos a respeito desses episódios, a paulista monja Coen, grande difusora do Zen Budismo, disse que “nem todos praticam o que pregam”. Apesar de ter chamado a enviada da ONU a Rangun, Yanghee Lee de “cadela e prostituta”, devido a um relatório muito duro a respeito dos rohingyas, Ashin Wirathu continua sendo um respeitado líder com um crescente número de violentos seguidores.

Ainda hoje os quase 5% da população de Myanmar que professa o islamismo persiste excluído da Lei de Nacionalidade o que os torna estrangeiros em seu próprio país, não podendo votar nem ter mais de dois filhos. Com razão o budismo, responsável por 7% dos teístas na face da Terra é a única religião cujo número de praticantes não deve crescer nas próximas décadas.

Sem propostas para pacificar o tremendo caldo político, cultural e religioso que inferniza a velha Birmânia, dificilmente a Liga Nacional para a Democracia de Sun Kyi - hoje uma senhora aos 75 anos de idade – conseguirá superar as contradições e convencer os generais a permitirem que ela de fato governe.

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