Prioridades: a quem vacinar?

dezembro 26, 2020.

Vitor Pinto.

Escritor. Doutor em Saúde Pública.

Aplicação de injeção intramuscular por enfermeira registrada, 2006

Foto de CDC em Unsplash

A marcha incontida do vírus

O terrível ano de 2020 chega ao fim com a indiscutível vitória do coronavírus. Desde que a OMS declarou a pandemia pela Covid-19 em 11 de março de 2020, um total de 80,2 milhões de pessoas foram contaminadas ao redor do mundo e 1,75 milhão perdeu a vida. O Brasil, com 2,8% da população mundial, respondeu por mais de 9% dos casos (7,45 milhões) e por 10,8% dos óbitos (190,5 mil), sendo superado nesta estatística macabra apenas pelos Estados Unidos de Donald Trump e pela Índia (no número de casos) de Narendra Modi.

Ainda sem um medicamento que faça a cura do mal, embora no Japão o favipiravir (nome comercial Avigan) já tenha conseguido resultados promissores na redução do tempo de internação, as esperanças agora se concentram nas vacinas que diversos laboratórios em tempo recorde começam a oferecer ao mercado. Já se sabe que será preciso escolher, imunizando alguns grupos antes dos outros. A discussão sobre quem beneficiar primeiro envolve epidemiologistas, administradores, economistas e, naturalmente, os povos.

Um país, no entanto, tem acumulado erros monumentais no combate ao vírus. É o Brasil, cujo “presidente” ao ser confrontado com o fato de que o país está ficando para trás na cobertura vacinal da população, declarou “não estar preocupado com isso” e ainda acha que está protegendo os brasileiros porque os laboratórios produtores não se responsabilizariam por eventuais efeitos colaterais das suas vacinas. Evidentemente Bolsonaro nunca leu uma bula dos medicamentos que toma, pois ali sempre estão listadas as possíveis consequências adversas, recomendando “procurar o seu médico” diante de qualquer sinal adverso, seja ao ingerir um melhoral ou um antibiótico. De acordo com o New York Times, “o plano brasileiro para Covid-19 está mergulhado no caos, brincando com o fogo”. Em sua 5ª. Auditoria específica, o Tribunal de Contas da União concluiu que “o Brasil não tem um plano estratégico para o enfrentamento da Covid-19”.

O Ministério da Saúde chegou a editar um “Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19”, mas ao especificar os “grupos prioritários para vacinação” listou nada menos que 21, vários deles com múltiplos subgrupos. Um especialista lembrou uma velha sentença aprendida nas salas de aula de cursos de saúde pública: “quando tudo é prioritário, na verdade nada é”. Assim, a população idosa que começa cedo, aos 60 anos (e não aos 65), transportadores rodoviários de carga, membros das forças de segurança e trabalhadores da educação são incluídos de maneira genérica com o que todos teriam direito. Desde que os postos técnicos de chefia do Ministério foram ocupados por militares (incluindo o próprio ministro), a credibilidade de suas diretrizes diminuiu drasticamente perante os brasileiros. Enquanto isso, na América Latina países como México, Chile e Costa Rica já começaram a vacinar seus habitantes e a Argentina está prestes a fazê-lo.

Critérios para a vacinação

Problemas éticos por vezes se sobrepõem ao diagnóstico médico: a quem cabe a tomada de decisões; como explicar aos que se negam a serem vacinados que estão prejudicando os demais pois a “imunidade de rebanho” só será obtida se muitos realmente se vacinarem; quem são os mais pobres dentre os países e as pessoas; as vacinas serão aplicadas só pelo setor público, ou as clínicas privadas poderão lucrar oferecendo-as aos mais ricos?

“America first!”. Com esta afirmativa. Trump comprou todo o estoque disponível de vacinas a serem produzidas por laboratórios americanos, impedindo que países mais pobres se beneficiem. Com tamanha falta de ética não foi surpresa sua derrota nas eleições de outubro passado, pois os democratas desconfiaram que logo viria nova ordem: “Republicans first”.

Os princípios gerais estabelecidos inclusive pela OMS incluem a maximização de benefícios e a minimização de danos, a promoção da justiça sanitária, a redução das desigualdades ou iniquidades no acesso à saúde, transparência nas informações, foco nos mais suscetíveis. Entretanto, esses são problemas que existem há muito tempo e evidentemente não cabe a uma campanha sanitária emergencial igualar a todos, corrigindo os seculares problemas que separam ricos e pobres por toda parte.

Não há vacinas para todos. Então, é preciso estabelecer precedências. Para o Centro de Segurança em Saúde John Hopkins (JH) desta universidade norte-americana, cujos dados são utilizados como referência global no mundo inteiro, os critérios devem obedecer a um processo confiável, transparente e aceito socialmente, para que seja acatado e respeitado pelas instituições e pela população, não sendo, portanto, um conjunto de regras decidido e imposto pelos políticos e pelos técnicos.

A proposta da John Hopkins, que é válida para os Estados Unidos, vem sendo um guia geral. O Nível 1 (prioridade absoluta) é de vacinação de profissionais em serviços de emergência e saúde pública; encarregados de diagnóstico de laboratório, distribuição e administração de vacinas; trabalhadores em transporte público, produção e distribuição de alimentos e pessoal do sistema educacional; pessoas com 65 anos e mais e seus cuidadores; pessoas com fatores de risco e população com elevada carga de doenças; profissionais de Centros de Saúde; Gestantes.

Para a JH devem ser excluídos do Nível 1 membros das forças de segurança policial e militar, pois em geral são jovens e sadios, e também as crianças. Já as gestantes seriam incluídas por seu maior risco de contraírem enfermidades graves. Quanto aos jovens a discussão permanece, visto que são considerados os que mais contribuem para a difusão de doenças na comunidade por sua elevada interação social. Outros guias relevantes são as produzidas pelo Departamento de Saúde britânico (“Priority groups for coronavírus vaccination”) e do Comitê Nacional de Imunização canadense (“Guidance on the priorization of initial doses of Covid-19 vaccine”).

Duas outras dificuldades estão no horizonte dos técnicos. O primeiro deles se refere à necessidade, para algumas vacinas, de uma segunda dose, pois este costuma representar um forte desafio para quem está na Atenção Primária em Saúde, de vez que a cobertura vacinal costuma diminuir drasticamente com muitos “esquecendo” do retorno. O segundo é o armazenamento a baixíssimas temperaturas. Apesar da ampla rede de frio montada ao longo dos anos pelo Ministério e pelas Secretarias de Saúde, a exigência de certas vacinas de temperaturas muito baixas inviabiliza seu uso no interior. O armazenamento de todo e qualquer insumo é um problema sério para o Brasil (e muitos países de segundo e terceiro mundos), onde o governo federal não fiscaliza e estoca precariamente o que compra, como ocorreu com testes que foram deixados até o limite da data de vencimento em seus armazéns de Guarulhos.

Por fim, surge a questão puramente financeira. Os países economicamente mais desenvolvidos já adquiriram volumes enormes de vacinas e a OMS que luta por um acesso igualitário não possui recursos para bancar os países menos abonados, inclusive porque Trump deixou de transferir as verbas já comprometidas para a entidade internacional. Num quadro global de crise provocado pelo coronavírus fatalmente não serão poucos os que terão de esperar numa longa fila pelo milagre da vacina.

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