Armênia, como sempre, em guerra

outubro 01, 2020.

Vitor Pinto.

Escritor. Analista internacional.

Armenia

O Cáucaso e o genocídio

Os armênios, com seus grandes narizes, estão de novo lutando. Desta feita repetem as guerras contra o vizinho Azerbaijão de 1988 a 1994 e de 2016, onde se situa o enclave de Nagorno-Karabakh (N-K). Trata-se de um território de 11 mil km2, o dobro do Distrito Federal e metade de Sergipe, o menor estado brasileiro, onde 90% dos 158 mil habitantes são armênios, um povo tão secular que já foi chamado de Homo Sapiens Syriacus pelo antropólogo alemão Egon von Eickedt. Eram os armenídeos, uma raça original oriunda do Cáucaso – a terra dos 1.000 idiomas -, competindo com judeus, gregos, georgianos, assírios, iranianos, sírios e turcos. São, no entanto, inconfundíveis: pele morena clara, olhos negros, cabeça arredondada (braquicéfalos), cerca de 1m65, 73 quilos e principalmente um nariz longo e curvo que inicia com uma corcunda, em forma de pá. Mantendo a tradição, o povo é cristão, hoje ligado à Igreja Apostólica Armênia; o país foi o primeiro a adotar o cristianismo em 301, doze anos antes de Roma. Já os azerbaijanos, ou azeris, constituem um grupo étnico turco e são muçulmanos xiitas.

A rixa tem raízes profundas, remontando modernamente ao holocausto ou genocídio armênio que teve seu auge entre 1915 e 1918 quando o Império Otomano controlava os Bálcãs e o Oriente Médio. O sultão Abdul-Hamid II, para castigar armênios que lutaram pelos russos contra os turcos, convocou os homens colocando-os a cavar trincheiras na linha de frente. Feito o trabalho eram eliminados pelos soldados turcos. As famílias pereceram nos campos de concentração no deserto de Deir al-Zor. Crianças nem seguiram com as mães, pois antes foram colocadas em caixotes e jogadas no Mar Negro. Finda a guerra Armênia e Azerbaijão transformaram-se em Repúblicas Socialistas Soviéticas anexadas pela ex-URSS. Alguns armênios teimosos que voltaram a suas casas na Anatólia Central foram massacrados pelo governo de Mustafá Kamal-Ataturk, tido como o Pai da Turquia Moderna. Em 1923 restava, em território turco, apenas uma população marginal armênia em Constantinopla. Apesar do terror típico do período otomano, a fama de crueldade que costuma acompanhar os turcos se deve essencialmente a esse genocídio, até hoje não reconhecido como tal nem pelo país nem pelo seu governo.

Seguiram-se sete décadas sob rígido domínio de Stalin e seus sucessores, até que a independência foi obtida em 1991 e a partir de então o caso de N-K, que estava adormecido, retornou em plena força.

Rotas do tráfico e do contrabando

Localizado na passagem da antiga Rota da Seda, o Azerbaijão, às margens do mar Cáspio, tem quatro movimentadas estradas que comunicam Rússia, Geórgia, Turquia e Irã, cruzando o país de este a oeste entre a Ásia e a Europa, posição geográfica vital para o comércio de gás e petróleo. E ainda tem 16% de sua superfície ocupada (N-K) por armênios separatistas.

Não só N-K, mas também outros micro países na região, como Ossétia do Sul e a República da Abkhásia na Geórgia (incorporada pela Rússia), seja pela instável situação política e econômica, transformaram-se em paraísos do tráfico humano e de drogas, comércio ilegal de armas, álcool, caviar, tabaco, com apoio de uma complexa rede de funcionários e de governos corruptos. Em Baku, Yerevan e Stepanakert (capitais, respectivamente, de Azerbaijão, Armênia e N-K), não é difícil encontrar traficantes e contrabandistas que funcionam como facilitadores ao proporcionar disfarces, pontos de contato, endereços seguros, visas, tickets, documentos de viagem, operando via agências fantasma que emitem passaportes e notas falsas aceitas por guardas de fronteira e funcionários de embaixadas que fazem parte do esquema. A região é, ao mesmo tempo, origem, trânsito e destino para os fora-da-lei.

Tudo por ali é fluido, tudo pode para os “conhecedores”. Pelas fronteiras de uma região conhecida como “o pequeno Cáucaso”, altas montanhas e densas florestas escondem o que for necessário. Os interesses nacionais em volta se misturam e tiram o proveito desejado, enquanto os povos atacam e se defendem cada um em nome próprio.

N-K está em terras azeris, mas considera o “dono da casa” (o Azerbaijão) como um inimigo. E mantém contato direto com o governo da Armênia e com seu maior apoio, o Irã. A Rússia tem uma curiosa política: apoia os dois lados, com o objetivo de ter controle sobre ambos. A Turquia de Erdogan, como o faz há mais de um século, odeia armênios e dá sustentação aos azeris. O Irã formalmente se declara neutro, mas militarmente apoia a Armênia. A ONU decidiu em 2008 pela integridade do território do Azerbaijão e o Grupo Minsk, composto por França, EUA e Rússia especificamente para lidar com o conflito de N-K, discorda dessa posição e pede imediata cessação dos bombardeios e dos ataques de todo tipo que estão destruindo tanques, drones e o moral ora de um, ora de outro lado.

As fronteiras são porosas. Os limites dos dois países em luta com o Irã são permanentemente policiados pelo exército russo que, no entanto, na área tem sua infantaria composta basicamente por soldados armênios. Na província de Nakhchevan, justo na ligação com o Irã, reside uma população que pode ir e vir livremente nos dois lados e é em boa parte composta por famílias, clans, amigos e parentes de todo tipo, cada um portando suas armas, que eventualmente pode dar cobertura para transeuntes ocasionais ou costumeiros. Por aí o fornecimento regular ou o contrabando de armas da Rússia para o Irã ou vice-versa, pelas facilidades encontradas, tem grande relevância.

Pela localização próxima ao Afeganistão, produtor de 87% da heroína consumida no mundo, esta é a droga preferida para o tráfico, embora cocaína, ecstasy, etc., também tenham clientela. Quanto ao tráfico humano, tradicionalmente mulheres caucasianas são utilizadas como mão de obra barata para as redes de prostituição e para a agricultura na Turquia e nos Emirados Árabes Unidos. De uns anos para cá, porém, a região passou a funcionar como rota preferencial para os migrantes em suas jornadas rumo à Europa.

O conflito atual

O conflito começou nesta 2ª. Feira, 29 de setembro de 2020 e desde então os dois lados trocam mútuas acusações de agressão.

Sem informações confiáveis, após dois dias de bombardeios constantes informa-se sobre a existência de dezenas de mortos e centenas de feridos.

O 1º Ministro armênio Nikol Pashinyan denunciou o ataque azeri-turco. Em pronunciamentos separados para a televisão estatal de Moscou, tanto ele quanto o presidente azeri Ilham Aliyev afirmaram que não aceitam realizar conversações de paz enquanto o outro não interromper os bombardeios.

Os dois lados acusam o inimigo de estar utilizando armamento pesado e sofisticado. Uma denúncia de que um F-16 turco abateu um avião armênio no espaço aéreo deste país não foi confirmada. Por outro lado, o ministro da defesa de Yerevan protestou por um drone azeri ter incendiado um ônibus com civis em Stepanakert.

Dentro de seu estilo ameaçador e nunca pacifista, o ditador turco Receep Erdogan simplesmente pediu que os armênios “desocupem Nagorno-Karabakh, colocando assim um fim ao conflito”, ignorando o fato de que toda a população do enclave é armênia. Putin pediu-lhe que se esforce para devolver a paz à região.

A auto-proclamada independência de N-K até aqui não é reconhecida por nenhum país do mundo.

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