Índia: caos na saúde e o coronavírus

julho 08, 2020.

Vitor Pinto.

Escritor. Doutor em Saúde Pública.

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Foto de Abhas Mishra em Unsplash

Saúde para todos: um sonho impossível

A Índia, país de 1,36 bilhão de habitantes (ainda 5% a menos que a China), nunca teve um sistema de saúde digno de tal nome e agora, submetida ao governo radical do partido ultradireitista Bharatiya Janata de Narendra Modi, não vê como fazer frente à pandemia trazida pelo Covid-19.

A OMS nos últimos anos vem defendendo uma política de “Cobertura Universal de Saúde” (UHC na sigla em inglês) em substituição à “saúde para todos” ‒ aprovada há quase 42 anos em Alma Ata, então capital do Cazaquistão ‒, mas com foco em resultados de modo a aceitar uma participação mais ativa da medicina privada. Com isso, os grandes grupos de administração de planos de saúde concentraram suas ambições na clientela dos países mais populosos do mundo.

Quase ao final de 2018 o governo de Modi apresentou ao país um plano ambicioso: Ayushman Bharat (Longa Vida para a Índia, em livre tradução) ou Modicare: Proteção Nacional à Saúde, com a proposta de proporcionar acesso gratuito a cuidados de saúde para metade da população vivendo em estado de pobreza, ou seja, a 100 milhões de famílias e 500 milhões de pessoas. Esse seria um passo gigantesco para alcançar a UHC, um dos principais objetivos de desenvolvimento sustentável para 2030.

Como o país aplica somente 1,4% do PIB em saúde, um dos mais baixos percentuais do mundo civilizado, o Ministério da Saúde entusiasmou-se e previu um salto para 2,5% até 2025. Hoje os serviços oferecidos pelo setor público, tecnicamente gratuitos, padecem de longas filas de espera, falta de recursos humanos e são de baixa qualidade. Os “planos de saúde” cobram preços proibitivos para a grande maioria e mesmo assim respondem por 80% das consultas de ambulatório e 60% das internações hospitalares. A situação é mais crítica na zona rural, onde estão 78% dos indianos e 2% dos médicos.

Uma visão geral dos problemas com que se defronta a Índia pode ser vista no texto “Srinagar: uma cidade em silêncio”, publicado neste site em 2/9/19: https://www.mundoseculoxxi.com.br/2019/09/2019-09-02-srinagar-uma-cidade-em-silencio/

Um lockdown desastroso

Em oportuno texto publicado pela Al Jazeera, a jornalista Pragya Tiwari (Indianos têm somente a si próprios para culpar pelo desastre na saúde) diz que no começo de junho a Índia emergiu de um dos mais rigorosos lockdowns já impostos no mundo para bloquear a contaminação pelo novo coronavírus, causando uma crise humanitária e devastando a economia. As medidas impostas pelo governo forçaram milhões de pessoas a voltarem a pé para suas cidades com muitos morrendo no percurso por esgotamento e fome. Sem leitos suficientes à disposição, pacientes com coronavírus tiveram de isolar-se em enfermarias precárias e sem apoio. Em hospitais sobrecarregados por vezes as famílias tiveram que cuidar de seus doentes pela falta de pessoal de saúde, ou correram a comprar ou importar os medicamentos receitados e inexistentes. As mídias sociais viram-se inundadas de pedidos de ajuda. Profissionais de saúde contraindo o vírus cresceram em números alarmantes.

Com o andar da pandemia em território indiano, o problema por vezes é agravado por serviços médicos e hospitalares privados ávidos de lucro que aumentam seus preços ficando inacessíveis mesmo à classe média. Não há regulação dos serviços médicos privados pelo governo, sob o argumento de que a Índia é uma democracia e cada um é livre para exercer sua profissão e cobrar o que acha que as pessoas lhe podem pagar.

Em última análise, quem tem dinheiro ainda consegue ter acesso a serviços de bom padrão. O “sistema de saúde” indiano na prática já inexistia antes da Covid-19 e a pandemia veio apenas agravar o caos

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