A Covid-19 no Brasil

maio 11, 2020.

TEXTO PREPARADO PARA A CNBB POR FLAVIO GOULART E VITOR GOMES PINTO.

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INTRODUÇÃO

Diante do Covid-19, um vírus extremamente agressivo, hoje uma ameaça universal, o Brasil reage precariamente, vítima que é de suas incontáveis e jamais adequadamente enfrentadas insuficiências.

Identificado na China no início de dezembro de 2019, em menos de cinco meses o mal já ultrapassa a marca de 3 milhões de pessoas resultando em 210 mil mortes. Uma triste liderança cabe aos Estados Unidos com 1/3 de todas as pessoas infectadas na face da Terra, o equivalente à soma dos cinco países europeus mais castigados pela pandemia. Uma das mais ricas cidades do planeta, Nova Iorque, chegou a destinar os corpos de homens e mulheres a covas coletivas. É sabido, no entanto, que muitos casos não estão sendo notificados ou são confundidos com outras causas.

A incidência do Covid-19 no Brasil não difere do padrão global no que respeita à alta taxa de letalidade (relação entre óbitos e casos diagnosticados) que está em torno de 6,9% nos dois casos, embora atinja picos mais extremos em países como a Itália com 13,5% ou, internamente, Ceará e Rio de Janeiro acima do patamar dos 9%. A distribuição dos diagnósticos e dos óbitos por regiões até aqui segue patamares semelhantes aos da distribuição da população, apesar de um relativo desequilíbrio para mais no Norte (12,3% dos casos e 8,4% das pessoas) ou para menos no Centro Oeste (3,4% e 7,4%), ressalvada a ocorrência muito provável de forte subnotificação.

Em cada sociedade há os que correm mais riscos. País das desigualdades, o Brasil não foge à regra. Por aqui o novo coronavírus ataca, de preferência, aos negros, pobres, moradores de periferias urbanas. Enfim, os desfavorecidos por uma sorte que só beneficia os mesmos de sempre. Morando em casas acanhadas, precárias, sem água e sem saneamento básico, muitos brasileiros não têm como se proteger de um mal que, afinal de contas, exige pouco: fazer cuidadosa higiene pessoal, lavar as mãos com frequência, manter um distanciamento razoável de outras pessoas, ficar em casa o máximo de tempo possível. Como já o demonstraram outras epidemias – como a gripe espanhola há mais de cem anos atrás, H1N1 e SARS mais recentes –, as desigualdades sociais é que são as grandes determinantes dos padrões de transmissão e de severidade de doenças de massa.

Uma breve análise do quadro epidemiológico revela que o novo vírus chegou num momento, sem dúvida, inadequado. Doenças respiratórias como a influenza e o dengue castigam historicamente a população brasileira, ao mesmo tempo que problemas que afetam o aparelho circulatório e os cânceres lideram as estatísticas de mortalidade. Na aguda crise atual, em que até o sistema funerário falha em cidades como Manaus e Belém, os portadores dessas últimas condições deixam de ser atendidos em nome da prioridade absoluta para os leitos reservados ao atendimento do Covid-19, pressionando ainda mais os hospitais que em muitos estados já estão em seu limite.

Ao mesmo tempo em que é submetido a uma política catastrófica de educação, o país sofre as consequências de ter o seu sistema de saúde em crise permanente, subfinanciado e que convive com um desarticulado regime de divisão de atribuições e recursos entre os três níveis de governo, ademais de enfrentar dura e por vezes predatória concorrência do setor privado (p.ex., a grande maioria dos leitos de UTI estão no setor privado e não no público).

A POLÍTICA DO ATUAL GOVERNO PARA A COVID-19

Em que pese a gravidade incontestável do problema, constatada em muitos países do mundo e também no Brasil, a reação ao mesmo por parte do governo brasileiro vem sendo marcada por equívocos em série, que têm colocado em risco a segurança sanitária da população.

Em primeiro lugar, a postura do próprio Presidente da República, muito aquém do que se esperaria de uma autoridade. Jair Bolsonaro tem, com efeito, minimizado a importância do problema, utilizando termos como “gripezinha”, “resfriado comum” e “histeria” provocada pela imprensa. Além disso, contrariando frontalmente as orientações de seu próprio Ministro da Saúde, depois demitido, tem se exposto e promovido diversas formas de contato próximo com cidadãos, até mesmo participado de aglomerações, inclusive com palavras de ordem contrárias à democracia e também às próprias medidas oficialmente assumidas pelo governo. Não obstante a gravidade disso, mantem postura de belicosidade contra governadores, prefeitos, cientistas e outras autoridades nacionais e estrangeiras, ao se contrapor visceralmente às medidas de controle sanitário que os mesmos vêm executando ou defendendo. O cume de tudo isso foi a demissão de seu Ministro da Saúde, Henrique Mandetta, que, bem ou mal, vinha executando medidas baseadas na ciência e nos ditames dos organismos internacionais de saúde, coerentes, aliás, com as políticas específicas de diversos países do mundo. Ao lado disso resolveu assumir, sabe-se lá por quais razões, a defesa da utilização de medicamento não suficientemente testado pela ciência, além do mais com efeitos colaterais potencialmente perigosos.

Paralelamente, medidas de proteção sanitária e econômica da população, particularmente a mais vulnerável, foram postergadas ou executadas com displicência e desprezo pelo problema. De forma acintosa, o foco colocado pelo Governo, com endosso claro do Presidente, tem sido a saúde da economia, particularmente de bancos e grandes empresas, muito mais do que na saúde da população.

O resultado disso é que não só as medidas sanitárias de isolamento e quarentena tem sido pouco acatadas pela população, à falta de exemplos vindos de cima, mas também intervenções importantes deixam de ser executadas a tempo como, por exemplo, a compra de insumos de diagnóstico; o investimento na busca informações mais rigorosas e em tempo ágil; a contratação de leitos hospitalares adicionais; a emissão de decretos ou a proposição de leis que pudessem relativizar o domínio e a soberania do setor privado na questão dos leitos hospitalares e de UTI.

OS PILARES DE UMA POLÍTICA DE CONTROLE

Sendo a Saúde um componente multifatorial relativo ao bem-estar da população, torna-se evidente que uma boa política de controle se reveste de grande complexidade e abordagens em múltiplas frentes de ação, seja no campo das políticas, da gestão pública ou mesma da cultura e da educação. Serão abordados aqui, contudo, aspectos fundamentalmente ligados à estrutura e à gestão do sistema de saúde, nominalmente: (a) o modelo assistencial necessário ao bom controle da epidemia; (b) a oferta de leitos hospitalares e de UTI; (c) a relação com o setor privado e (d) o aprimoramento das informações para a tomada de decisões.

O modelo assistencial

A atenção primária em saúde, ou atenção básica, como é conhecida no Brasil representa a "porta de entrada" dos usuários no sistema de saúde, tendo como objetivo não só promover medidas educativas e de prevenção de doenças, como solucionar casos de doenças agravos, além de direcionar e garantir o encaminhamento dos mais graves aos níveis mais complexos, como os hospitais, emergências e ambulatórios de especialidades. No mundo todo, são os países que tem a sua atenção básica mais pujante é que tem colhidos melhores resultados no controle da pandemia. O Brasil tem a Estratégia de Saúde da Família como modelo mundialmente respeitado de atenção básica, contando hoje com 45.796 mil equipes, cobrindo cerca de 150 milhões de pessoas estão cobertas, embora de maneira não totalmente regular.

Mas cabe a pergunta: a atenção básica ela estaria dando contado recado no momento presente? Há muitos problemas, todavia, entre eles, as dificuldades de fixação de médicos; as carências materiais e de recursos humanos que afetam as equipes; a pouca valorização de tal estratégia de ação, seja por parte dos profissionais, dos mandatários políticos e mesmo da população; a carência de profissionais qualificados nas diversas profissões de saúde.

Sobre os leitos hospitalares

Dados recentes mostram que o Brasil dispõe de 2,01 leitos por 1.000 habitantes, o que representa uma taxa inferior àquela de países como a Itália (3,18), a Espanha (2,97) e a Inglaterra (2,81), sendo bastante desigual entre as diversas regiões e unidades da federação. Apenas uma parte de tal capacidade hospitalar encontra-se disponível para atendimento a toda a população, sendo 31% dos leitos vinculados apenas aos clientes de planos de saúde e particulares de modo geral. Mesmo na rede pública do SUS, 21,5% dos leitos são de natureza privada e 64% filantrópicos, ou seja, fora do controle estatal direto. Em termos de leitos públicos, em dois terços das regiões de saúde do país o número de leitos de UTI por 100 mil habitantes é inferior ao mínimo necessário, mesmo para um ano típico, sem considerar as necessidades trazidas ao cenário pelo Covid-19. Em se tratando da oferta de leitos de UTI e respiradores disponíveis, verifica-se que a disponibilidade no SUS é cerca de 50% da oferta total, com enorme heterogeneidade regional na distribuição de tais recursos e que mesmo juntando SUS e serviços privados, mais de metade das regiões de saúde dispõem leitos insuficientes. Verifica-se, ainda, que das regiões de saúde com número de leitos de UTI pelo SUS abaixo do mínimo, pelo menos a metade não possui leito algum, o que significa que parcela apreciável da população que depende exclusivamente do SUS conta com zero leito de UTI na região em que reside. Tal carência absoluta se concentra nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

A relação público-privada

Uma maior cooperação entre o Poder Público e a iniciativa privada tem sido advogada como um caminho para se contornar este grave problema que aflige o país. Segmentos mais lúcidos e comprometidos com a saúde pública no Brasil, defendem que se implemente no país uma estratégia de “fila única” para internação e UTI, com foco nos casos graves de Covid-19, independentemente de os pacientes serem usuários, ou não, da rede dos planos privados. Isso, evidentemente não é aceito pelas empresas do setor, que defendem que seus serviços sejam oferecidos apena com base no mercado, ou seja, para quem contribua financeiramente de forma direta com o sistema. Propõe-se, assim, a criação de um sistema nacional de vagas, nos moldes do atual e bem-sucedido Sistema Nacional de Transplantes, sob regulação do Ministério da Saúde, dentro de um modelo já testado em outros países, acarretando subordinação do setor privado da saúde às políticas públicas, pelo menos enquanto dure a pandemia. Tal medida tem respaldo no art. 5º da Constituição Federal e em decretos já editados relativos a calamidades. Trata-se de um imperativo ético do qual não se pode fugir. É preciso deixar claro que a preservação da vida é de responsabilidade pública e, em um caso como o da presente pandemia, uma fila única e de gestão pública deve ser constituída, face ao potencial de omissões e oportunismos discriminatórios típicos dos negócios puramente privados.

Sistema de informações

Sobre as informações relativas à pandemia, deve-se reconhecer que a capilaridade do SUS no Brasil, embora tenha lacunas, tem sido capaz de gerar informações relativamente confiáveis. Todavia, nos cemitérios brasileiros há centenas de covas à espera de novos inquilinos, sendo estas numericamente muito superiores às mortes registradas nas estatísticas oficiais.  Exemplificando, no Brasil ocorreram, em 2019, cerca de 58 mil mortes por “pneumonia” e 44 mil por “insuficiência respiratória”, enquanto nos primeiros quatro meses de 2020, tais registros já são de 54, 8 mil e 41,6 mil, respectivamente. Ao mesmo tempo os números oficiais de morte por Covid-19 são, até o momento de tal levantamento, em torno de três mil no país. A explicação para isso é simples, embora trágica: não há testes disponíveis em quantidade suficiente no país, o que faz com que muitas pessoas que estão adoecendo – e mesmo morrendo – tenham diagnósticos apenas presuntivos, ou provisórios. E aqueles que morrem, para os quais é formalmente exigido que em seu atestado de óbito conste a causa da morte, recebem aqueles rótulos, por assim dizer, “genéricos”. Mas não há dúvida, apontam os especialistas: o que está matando mesmo é a Covid-19.

O QUE FAZER?

Ações multisetoriais e multidisciplinares, além do mais, urgentes, são necessárias, além de uma compreensão mais adequada, liberta de ideologias e baseada na ciência. O quadro seguinte contém uma síntese do que deve ser feito.

Em primeiro lugar, unificação de procedimentos, em bases negociadas entre níveis de governo versus o autoritarismo e a beligerância que se constata até agora, ressalvando que a realidade altamente heterogênea do pais, tanto do ponto de vista econômico, como cultural e epidemiológica deva ser considerada.

Isolamento e quarentena são medida testadas em todo o mundo e os países que deixaram de optar pelas mesmas, mesmo por períodos restritos de tempo, estão pagando um alto preço em termos de mortes e de custos econômicos, além da sobrecarga do sistema de saúde; tais medidas devem ser defendidas a todo custo, em que pese a controvérsia e o tibieza com que algumas autoridades vêm tratando o problema.

Impõe-se também a necessidade de desenvolvimento de uma política de testagem em massa, com a devida articulação de insumos, logística e estratégias para sua operacionalização, com total urgeêcia em altos percentuais da população, longe da atual tática de fazê-lo por “drive thru”, o que naturalmente contempla apenas os segmentos da população com possuem veículos.

Medidas de ampliação de leitos de UTI e de equipamentos de hospitais públicos são também necessárias, inclusive com eventual intervenção estatal em serviços privados, implicando na mobilização de recursos para tanto, mesmo que originários de fontes pouco habituais, como, por exemplo, os recursos de emendas parlamentares e os recursos de financiamento eleitoral e partidário.

Não apoiar qualquer açodamento no retorno às atividades públicas, respeitando os pareceres dos especialistas em epidemiologia e não apenas aos agentes da área econômica.

Cautela quanto às “balas mágicas” às vezes anunciadas pelas autoridades (caso da cloroquina) e reforço às medidas de intervenção e tratamento que sejam efetivamente baseadas em evidências comprovadas pela ciência.

Atenção e cautela, também, quanto à verdadeira “epidemia” de notícias falsas (fake- news), muitas delas revestidas de interesses comerciais e viés ideológico e partidário.

Melhoria das informações estatísticas e da capacidade decisória das autoridades.

E por último, mas não menos importante, especial atenção e cuidado com os segmentos mais pobres da população, além daqueles considerados “grupos de risco” para doença, como é o caso dos idosos, portadores de doenças crônicas e debilitantes, presidiários e outras populações confiadas.

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