O vírus nunca dorme

abril 06, 2020.

Como a América Latina reage ao Covid-19.

Despreparada como de costume, com governos débeis e décadas acumulando problemas e desigualdades sociais tremendas, a América Latina (623 milhões de habitantes) luta com as precárias armas organizacionais e financeiras de que dispõe para fazer frente a uma pandemia que já afeta a todos seus 20 países com quase 22 mil casos – a metade no Brasil - e mais de 1.100 mortes até este quinto dia de abril de 2020. A frase do título (O vírus nunca dorme) foi dita pelo Dr.Ying-Du Lo, chefe da missão da OMS em Cingapura, ao responder quando lhe perguntaram sobre a velocidade de reprodução do Covid-19.

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Foto por Hayden Dunsel em Unsplash

Vitor Pinto, Analista internacional

Perspectivas econômicas, sociais e políticas

A CEPAL, depois de constatar um crescimento no PIB regional de apenas 0,1% em 2019 e estimar uma expansão de 1,3% para 2020, contenta-se com míseros 1,8% negativos devido aos impactos do coronavírus. Em sua análise, a Comissão lembra que já “antes da disseminação do Covid-19 a situação social na região estava se deteriorando com o aumento dos índices de pobreza e extrema pobreza, persistência das desigualdades e descontentamento social generalizado. Nesse contexto, a crise terá repercussões negativas na saúde, na educação e no emprego”.

Segundo análise da Atrevia, conhecida empresa espanhola de comunicação estratégica, nas Américas os sistemas de saúde menos preparados (por problemas de organização, de infraestrutura ou falta de recursos) são os da Guatemala, El Salvador, Haiti, Guiana e, acima de todos, Venezuela. As economias mais expostas aos impactos gerados na China são Brasil, Chile e Peru, por serem os mais dependentes do comércio com a nação asiática.

Do ponto de vista político, as fragilidades mais notórias localizam-se em países sem liderança social (Chile, Brasil), em crise econômica de grande magnitude (Argentina), com governos em final de mandato (Peru, Equador), em meio a campanha fortemente polarizada (Bolívia), com administrações públicas muito fracas (América Central e Caribe) ou em aguda deterioração institucional e financeira (Nicarágua, Venezuela).

A luta sem rumo contra o Covid-19

Observando-se a região em seu todo, vê-se que as estratégias adotadas para o combate à infecção causada pelo vírus coronavírus pouco variam de um país a outro, mas quando se examinam as medidas colocadas em prática os enfoques flutuam entre o exagero e a irresponsabilidade ao sabor da capacidade (ou falta de) dos governantes e do uso da força militar por parte de cada um.

Sob o aspecto técnico, as orientações provenientes do setor de saúde pública costumam seguir, com maior ou menor ênfase, aquilo que, depois de certa relutância, a OMS e os Estados Unidos estão sugerindo.

Presidentes enfraquecidos, com alta rejeição popular, ou que simplesmente têm um comportamento arbitrário como regra, aproveitam-se das normas que exigem isolamento social e quarentena doméstica, para reimplantarem medidas ditatoriais. Este é o caso de Equador, Bolívia, Chile, Honduras, Panamá, República Dominicana e Venezuela, com decretos de toque de queda (toque de recolher) já vigentes.

Devido a fatores não exatamente claros, há uma forte disparidade na taxa de letalidade (relação entre óbitos e número de casos testados como positivos): Costa Rica é a situação mais favorável com uma baixa proporção de 0,5% seguida pelo Chile com 0,7%, enquanto no Brasil seus 4,4% são considerados muito altos (11.130 casos e 486 mortes), embora sendo ainda inferior ao dado de toda América Latina que com 5,5% iguala-se à taxa mundial. A situação mais crítica acontece em Guayaquil, a segunda cidade em importância e população do Equador, onde face à implosão do sistema de atenção à saúde e do setor funerário os corpos das vítimas ou permanecem dias nas casas ou são lançados na calçada.

Na síntese a seguir, apontam-se principalmente eventuais particularidades ou mesmo curiosidades de cada país em análise (não se trata de um resumo de todas as iniciativas em curso, o que seria repetitivo e exigiria um texto bem mais longo). As decisões tomadas agora têm prazo delimitado para quando o final da crise sanitária é esperado. Em geral, escolas, comércio, indústrias, restaurantes, bares estão fechados e eventos culturais e turísticos ou competições esportivas foram suspensos, com prejuízos financeiros generalizados. As ruas desertas são a marca mais aparente da pandemia e os técnicos ameaçam as gentes com a hipótese de que a infecção, que estaria só no começo, logo poderá espalhar-se contaminando também aos mais pobres. A esperança é de que, como em outras epidemias (recentes ou seculares), o contágio alcance um ponto máximo, de pico, e então comece a ceder permitindo a retomada da vida econômica. Enquanto isso nas melhores universidades (principalmente as chinesas) e centros de excelência científica ligados à saúde pública pesquisadores se debruçam sobre suas mesas numa busca desesperada por medicamentos e vacinas eficazes.

Os países e seus desafios

Argentina – o governo de Alberto Fernández proibiu demissões de funcionários por 60 dias e firmou decreto concedendo ajuda financeira a pequenas empresas que permite redução de até 95% no pagamento de contribuições do empregador à Previdência Social. As regras das relações do trabalho permanecem válidas e a quarentena em todo o país vale até 13 de abril. Chegou a ser assinado decreto considerando os serviços privados de saúde como de interesse público, mas os donos dos Planos de Saúde se reuniram com o presidente da República pressionando-o com sucesso a anular a decisão. Com isso, perdeu-se a chance de fazer funcionar um sistema de saúde realmente único (em princípio com enormes vantagens para a população).

Bolívia – Decreto de Emergência Sanitária foi assinado após três dias de descumprimento popular da quarentena. Cada casa tem apenas um dia na semana para fazer compras. As eleições foram suspensas, com o que segue no poder Jeanine Añez, presidente transitória e ela mesma candidata. Evo Morales não poderá concorrer.

Brasil – o presidente Jair Bolsonaro é, junto com o mexicano López Obrador, o único a perder apoio popular na atual crise por manter posições dúbias ou contrárias às orientações nacionais e internacionais para enfrentar o coronavírus. O país, que tem o maior número de casos diagnosticados no continente, concedeu ajuda de US$ 125 a pessoas que ficaram sem qualquer renda neste período, mas, ao invés de proteger trabalhadores autorizou empregadores a não pagar salários por 4 meses. Classificando a epidemia do covid-19 como “uma gripezinha” e se empenhando diariamente por um “isolamento vertical” (só para idosos, autoimunes e portadores de comorbidades), mantém um clima de enfrentamento com seu ministro da Saúde que, no entanto, segue aplicando as estratégias recomendadas pela OMS.

Chile - o país se destaca pela aplicação de grande número de testes diagnósticos e pelo controle da epidemia em baixas taxas de incidência e letalidade. O presidente Sebastián Piñera, enfrentando séria crise que ameaça seu mandato, aproveitou para decretar o ‘Estado de exceção constitucional de catástrofe’ por 90 dias, limitando direitos de propriedade, restringindo liberdades e devolvendo às ruas pelotões dos mesmos carabineros de triste memória por recordarem os tempos da ditadura de Pinochet. Visitas a asilos de idosos estão vetadas e nos enterros proíbem-se desde qualquer preparação do cadáver à colocação de coroas de flores ou a aproximação a menos de 2 metros entre as pessoas e o féretro. Além do aumento do salário-mínimo para 350 mil pesos (R$ 2.160,00) foi instituído um imposto sobre fortunas. Os protestos de rua de todas 6as, feiras acabaram e o referendo constitucional foi adiado, mas a incidência do Covid 19 permanece baixa: 3737 casos e 22 mortes em uma população de 18,9 milhões de habitantes.

Colômbia – empresas de turismo e de aviação obtiveram uma redução de impostos e acesso a créditos. Vigoram restrições apenas para eventos com mais de 500 pessoas e o isolamento se aplica a maiores de 70 anos. Fronteiras por terra e o acesso por trens estão impedidos.

Costa Rica - Aeroportos e o porto de Caldera continuam abertos, mas o ingresso no país só é permitido a costarriquenhos. Carros não podem circular das 10h da noite às 5h da manhã. O programa de concessão à população de cestas básicas foi ampliado com distribuição pelos Correios nacionais (DAF – Diarios Alimentarios Familiares) e está em discussão uma redução salarial e das jornadas de trabalho do funcionalismo. Os casos de Covid 19 são 416 com apenas 2 óbitos.

Cuba – Deixou de funcionar o transporte público entre províncias, os tradicionais espetáculos musicais cubanos estão suspensos e os turistas devem permanecer em seus hotéis, mas apesar de se considerar em estado de emergência sanitária a quarentena não foi adotada e só o distanciamento social é recomendado. Já com 8 óbitos e 320 casos até o 5º dia de abril, Cuba tem fôlego para produzir em massa testes antivirais que oferece a outras nações. Quatorze Brigadas com 539 Médicos e pessoal de enfermagem cubanos foram enviadas a 14 países (Itália em Bergamo, Andorra, Venezuela, Nicarágua, Granada, Suriname, Jamaica, Haiti e seis ilhas caribenhas), e outras partiram para reforçar as que já atuam há anos na África do Sul, Angola e Qatar. Contudo, com o agravamento da epidemia na ilha foi necessário deslocar centenas de funcionários e alunos do Instituto Nacional de Deportes para apoiar o esforço sanitário do governo. Um hospital de campanha está sendo construído às pressas em Santiago de Cuba.

Equador – líder no continente quanto ao número de casos por 1000 habitantes, o sistema de saúde e as funerárias entraram em colapso com epicentro na província de Guayas e em sua capital Guayaquil, onde os corpos chegaram a permanecer até cinco dias nas salas das casas ou foram descartados pelas famílias para a sarjeta. Ademais das carências do sistema provincial de proteção à vida e à morte, o fator principal foi o retorno de férias de equatorianos que migraram para a Espanha, onde residem mais de 400 mil num país com 17,2 milhões de habitantes. O presidente Lenín Moreno decretou Estado de Exceção com Toque de Recolher entre 21h e 5h. A ministra da Saúde Catalina Andramuño renunciou ao cargo por falta de apoio. A prefeita de Guayaquil, Cinthia Vitteri (guarda quarentena em casa por ter contraído o mal), disse horrorizada que o setor público não retira os mortos das casas e os que caem em frente aos hospitais ficam no chão pois ninguém os quer recolher.

El Salvador – com 3 óbitos e 62 casos pelo coronavírus até o momento, o presidente Nayib Bukele estabeleceu uma quarentena obrigatória somente para grávidas e para quem tem acima de 60 anos de idade.

Guatemala – o presidente Alejandro Giammattei, de direita, que é médico, resolveu proibir a frequência às praias, viagens pelo país e a venda de bebidas alcoólicas. O sistema de saúde é tido como o mais desestruturado e ineficaz da região. Vigora um ‘Estado de Calamidade Pública’ e não é permitida a entrada no país de viajantes procedentes da China, Irã, Coréia do Sul, Itália, Espanha, Alemanha e França, mas os provenientes dos Estados Unidos não têm qualquer restrição.

Haiti – sob ‘Estado de Emergência’ com Toque de Recolher entre 22h e 5h e o último a identificar casos de afetados pelo coronavírus (dois primeiros casos diagnosticados há 2 semanas e 1º óbito em 5 de abril – de um homem de 55 anos com comorbidade ligada a diabetes), este que é o país mais pobre das Américas enfrenta severas dificuldades. Como referiu a BBC, o Haiti não se recuperou da cólera, terremoto, dengue, furacões, da falta d’água, violência, instabilidade política, corrupção, insegurança e dos problemas de saúde pública. Manter um distanciamento social e o confinamento das pessoas em um local como Cité Soleil é um desafio dificilmente superável. As fronteiras estão fechadas. Um carregamento com 280 mil máscaras e crédito de 50 mil dólares foi enviado por Taiwan, unindo-se ao apoio da China.

Honduras – o combate à epidemia se dá dentro do ‘Plano de Contenção e Resposta’, com emergência estabelecida para coronavírus e dengue. Com 268 casos, os óbitos já somam preocupantes 22 até o momento.

México - AMLO (Andrés Manuel López Obrador) carrega escapulários como proteção, diz ao povo que ‘só deve ficar em casa se não for indispensável sair’, mantendo os aeroportos abertos mas com as escolas fechadas até 24 de abril. Da mesma forma que o presidente brasileiro, diminui a importância do Covid-19 e mantém uma rotina de viagens pelo país.

Nicarágua - ‘Vamos cuidar-nos todos juntos’ disse a vice-presidente Rosario Murillo que também é esposa do presidente sandinista Daniel Ortega, discursando na grande marcha convocada pelo governo e denominada de ‘Amor em tempos de Covid-19’. Ignorando as orientações internacionais de que é preciso isolar ao invés de aglomerar, centenas de brigadistas têm percorrido as casas para repartir informações e conselhos, como faziam quando dos surtos de dengue.

Panamá – em Estado de Emergência Nacional e com voos internacionais suspensos, os panamenhos estão submetidos a uma dura norma governamental que só permite saídas de casa por 2 horas e por turnos, com controle pelo número da identidade.

Paraguai – o fechamento das fronteiras, adotado de forma parcial, desde 16 de março abrange somente oito pontos de entrada, escolhidos por serem trânsito de contrabando e de maior criminalidade.

Peru - Martín Vizcarra, o presidente quase em fim de seu curto mandato, foi o primeiro a decretar quarentena geral e obrigatória. Agora decidiu implantar uma curiosa medida, um ‘pico y placa de peatones’ (rodízio de pedestres) que separa homens e mulheres. Eles podem sair de casa às 2as., 4as. e 6as., enquanto elas vão para as ruas nas 3as., 5as. e sábados. Aos domingos todos devem ficar em casa.

República Dominicana - o Toque de Queda, das 20h até as 6h, tinha previsão de encerrar-se em 3 de abril, mas foi prorrogado por mais 15 dias. A circulação de pessoas só está proibida nesses horários (exceto pessoal de imprensa, setores elétrico e de segurança e saúde). As escolas foram cerradas somente nos dias 16 e 17 de março “para desinfecção”. Meios de transporte não funcionam, mas locais de alimentação seguem abertos, além das farmácias. Sem quarentena, o número de infectados já disparou com 1.500 infectados e 82 óbitos, sendo dois deles de condenados presos na cadeia de Santo Domingo.

Uruguai – a administração de Lacalle Pou limitou-se a ‘exortar que se evitem aglomerações e que, na medida do possível, as empresas estimulem o trabalho a distância’. Com aulas presenciais suspensas, as praias de Punta del Este foram isoladas. Para compensar medidas de apoio econômico aos mais pobres, decreto estabeleceu descontos de 5% a 20% nos salários dos que ganham mais de 80 mil pesos mensais (R$ 9.738,00 ao câmbio atual), incluindo aposentados e militares. Os cartórios de Registro Civil curiosamente acharam necessário comunicar que casamentos podem ser celebrados, mas só com a presença dos nubentes (ainda bem!) e das testemunhas.

Venezuela - a quarentena, de início válida somente para sete estados logo foi estendida a todo o país. Com as escolas abertas, mas restaurantes, bares, discotecas e o comércio cerrados, tanto o sistema de saúde venezuelano como setores de serviços básicos de água, eletricidade, devastados, seguem em emergência permanente. As sanções dos Estados Unidos que impedem a venda do petróleo e seus derivados, causam severos problemas adicionais à economia bolivariana. A ajuda chinesa chegou na forma de 22 toneladas de insumos médicos (equipamentos de ventilação, tomógrafos, desfibriladores, máscaras, testes rápidos) e 50 toneladas de alimentos e outros artigos em duas remessas urgentes.

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