A direita pelo mundo e suas coincidências

março 04, 2020.

Vitor Pinto

Escritor. Analista internacional

As duas primeiras décadas do século XXI assistiram a passagem de uma onda global da direita, extrema ou quase, trazendo de volta conceitos e práticas que pareciam ter sido superados com o final da 2ª. Guerra nos idos de 1945*. Talvez pela falta de memória com que a humanidade costuma percorrer sua história, talvez porque hoje pelo menos 95% das pessoas não presenciaram os horrores de então e já nem escutam mais aos idosos que restaram para contar suas tristes experiências de vida e de resistência. Afinal, um macróbio que tenha atingido 90 anos de idade neste 2020, à época em que Hitler infernizava o mundo era um jovem no início da adolescência.

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Marine le Pen e Vladimir Putin se cumprimentam

Deixando de lado as ditaduras persistentes na África, já é possível contar pelo menos dezesseis países com governos politicamente "conservadores" (de direita), a começar pela Rússia de Putin que iniciou sua trajetória nas vésperas do final do século precedente e a continuar, pela ordem em que os atuais mandatários assumiram o poder, por Síria, Israel, Emirados Árabes Unidos, Hungria, República Checa, China, Turquia, Egito, Índia, Polônia, Filipinas, Arábia Saudita, Estados Unidos, Brasil, Reino Unido.

Há uma série de características comuns que no todo ou em parte são compartilhadas pelos comandos políticos dessas nações. Com dosagens e variações por vezes devidas a interesses regionais, comportam-se como regimes aparentemente democráticos. Em geral, defendem posições nacionalistas com exacerbado patriotismo, procuram desestruturar os poderes Judiciário e Legislativo para concentrar as decisões no Executivo, são xenófobos e rejeitam a imigração, perseguem as chamadas organizações não governamentais (de direitos humanos, Anistia Internacional, Greenpeace, entre outras), favorecem o militarismo e opõem-se a partidos e movimentos de esquerda. Têm ativa base religiosa e, particularmente na Europa, costumam estimular a islamofobia, a sinofobia, e o euro-ceticismo. São regimes que têm sido descritos como neonacionalistas e populistas de direita. Alguns exemplos podem esclarecer melhor as múltiplas investidas desse grupo sobre o que antes se denominava de social democracia ou de estado de bem estar social.

Da KGB às batalhas de Idlib

Recém saído das hostes da antiga KGB soviética, Vladimir Putin herdou o comando das mãos trêmulas de Boris Yeltsin em 1999 e desde então vem dedicando todos seus esforços à permanência no poder, bloqueando os passos de seus potenciais adversários. No momento faz de tudo para sustentar a ditadura de al Assad na Síria mesmo que isso custe a vida de outras milhares de pessoas na cidade de Idlib – último bastião opositor com um foco remanescente do Estado Islâmico - onde mantém o apoio às forças curdas, o que o faz indispor-se com seu aliado Recep Erdogan, o presidente da Turquia. Este, por seu turno, numa clara e absurda interferência na soberania de outro país, – agindo como um califa num sonhado e revivido novo Império Otomano – invadiu a Síria para ai implantar uma área de proteção aos interesses turcos, provocando outra onda de exilados desarmados que em desespero de causa forçam o acesso à Europa chegando até as fronteiras da Grécia e da Bulgária que se protegem como que enfrentando uma invasão armada.

América e Hungria first

A exclusão forçada do Outro como política de governo é transparente no discurso de Donald Trump que ao justificar seu apelo à “América Primeiro”, ofende o México (com a aceitação de Lopez Obrador) ao impedir a entrada de salvadorenhos, hondurenhos, guatemaltecos (até de brasileiros) sem esperanças em suas terras, com a construção de mais um muro fronteiriço. Em seguida o 1º ministro húngaro Viktor Orbán repetiu o slogan, desta feita para fechar o caminho para seu país a migrantes (historicamente poucos) em sua maioria sírios: Hungria First, ou seja, antes estamos nós e depois quem quiser arriscar-se. É o mesmo comportamento de Netanyuahu que rejeita os palestinos e expande as próprias fronteiras.

Logo Orbán ganhou seguidores no antes comunista leste europeu, a tal ponto que se consolidou uma aliança anti-União Europeia (UE) com a participação de Polônia, Eslováquia e República Checa. Esta última é uma surpresa, pela tradição de liberdades herdada pelo país graças à "revolução de veludo" do poeta Václav Havel em 1989. Apesar da fama de ser um líder folclórico e adepto inveterado do fumo e da bebida, Milós Zeman foi reeleito para a presidência em 2018 derrotando a oposição liberal do renomado cientista (químico, presidente da Academia Checa de Ciências) Jirí Drahos. Ganhou por ter uma plataforma anti-imigração e pró-Putin, com apoio formal desde a campanha de Marine le Pen e de Geert Wilders, do Partido da Liberdade Holandês.

A velha luta contra o comunismo e saudades de Hitler

Aproveitando-se de que os vencedores de 1945 baixaram a guarda, grupos neonazistas se multiplicam pelo sul e pelo norte. Radical ao extremo, o filipino Rodrigo Duterte discursa: “Hitler matou 3 milhões de judeus. Agora, aqui há 3 milhões de viciados. Gostaria de matá-los todos”.  A Anistia Internacional  está pedindo uma investigação de Duterte por crimes contra a humanidade, depois de sua Política Antidrogas ter assassinado extrajudicialmente  a mais de 7 mil “viciados”.

A fim de eliminar o que considera serem os últimos vestígios do comunismo na Polônia, Andrzev Duda com suporte do seu ultradireitista Partido da Lei e da Justiça mudou o sistema judicial, elevou o padrão policial de perseguição ao pensamento de pretensos esquerdistas e se uniu a Orbán adotando uma política isolacionista em desafio ao Conselho Europeu para o qual suas medidas violam a Constituição e os mais elementares princípios de convivência continental.

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Bolsonaro presenteia Donald Trump com uma camisa 10 da seleção brasileira de futebol

Erdogan Orban

Recep Erdogan e Viktor Orbán lado a lado

Outro a navegar por essas águas é o brasileiro Jair Bolsonaro que não emitiu uma só palavra de crítica a um seu ministro (da Cultura) quando este copiou Goebbels, o braço direito hitlerista, ao mesmo tempo em que – sem ter inimigos reais à vista – coloca as culpas dos próprios insucessos no comunismo e, além de rechear seu governo com militares, arremete com frequência contra chefes dos poderes legislativo e judiciário, não escondendo suas simpatias a líderes como Trump, Netaniahu, Orbán e Modi.

Novos nacionalistas e o futuro

É assim que se autodenominam os seguidores de Boris Johnson para explicar sua posição ideológica ao condenar o Reino Unido a afastar-se da União Europeia (UE) por meio do lamentável processo do Brexit que no momento ameaça romper a própria unidade da velha Inglaterra com Irlanda do Norte e Escócia. Johnson não tem adversários, pois os “tories” conseguiram reduzir o trabalhismo britânico a cinzas (do mesmo modo que o bolsonarismo arrasou com o PT no Brasil) e conta com o apoio explícito de Trump e dos republicanos norte-americanos.

No front externo Johnson, enquanto gasta a maior parte de suas energias discutindo com Bruxelas que ainda comanda a EU, fortalece o indiano Narendra Modi em franca ofensiva para retirar os direitos dos muçulmanos em todo o território da imensa Índia (começando pela Caxemira): uma tarefa gigantesca considerando que os seguidores de Alá constituem algo mais que 14% (ou 190 milhões de habitantes) da população do país.

Outros modelos de xenofobia extrema são hoje vistos na Turquia de Erdogan com seu ódio absoluto aos curdos e na perseguição ao povo uighur na província de Xinjiang no oeste da China, palco de uma das mais radicais tentativas modernas de varrer uma raça da face da Terra. Milhões de uighures são mantidos em campos de concentração, chamados de reeducação pelo governo de Jin Ping que nada informa sobre sua real situação, alimentando suspeitas de que muitos já estejam mortos. Partidos fascistas que se multiplicam na Europa tentam construir uma rede de apoio entre si, mas enquanto suas tentativas de crescimento permanecem dentro dos limites democráticos, vem sendo contidos em várias eleições no Ocidente. No caso mais agudo de Matteo Salvini na Itália sua permanência como 1º Ministro (após castigar sem dó nem piedade aos que, vindos do leste, chegavam nas embarcações precárias às costas do país), resumiu-se a quinze meses, de junho de 2018 a setembro de 2019. Já Marine Le Pen teve de se contentar com uma fração do eleitorado francês.

Para onde tudo isso nos levará? As ideias de um movimento ultradireitista coeso universal até aqui não se concretizaram. A esquerda continua amargando os erros do passado recente que lhe reduziram pelo menos as perspectivas atuais. É verdade que na Escandinávia não há mudanças significativas de rumo e Portugal permanece como uma ilha de esperança ao adotar, ainda, um regime socialmente aberto, enquanto Luxemburgo acaba de reavivar sonhos de bem-estar social ao decretar a gratuidade total dos transportes públicos (trens, ônibus, metrô) dentro de seu pequeno território.

*: vide texto de novembro/2019 de Mundo Século XXI - https://mundoseculoxxi.com.br/2019/11/18/do-comunismo-a-ressurreicao-da-ultradireita/

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