Iraque, uma vítima da má sorte

janeiro 16, 2020.

Vitor Pinto (01/2020)

Não é justo o que estão fazendo com o Iraque. Afinal, na velha Mesopotâmia entre o Tigre e o Eufrates, teriam nascido - entre muitos outros homens extraordinários - Abrahão, Noé, Hamurabi, Nabucodonosor e até Harum al-Rashid, o califa das 1.001 Noites de Bagdá; além de Simbad, O Marujo, originário do porto de Basora que hoje é o epicentro das revoltas populares contra o governo; e de Saladino, um curdo que virou Califa do Egito e derrotou a 3a. Cruzada cristã. As referências "modernas" datam pelo menos do século 21 a.C. e o islã só chegou por lá no século VIII d.C., vindo da Pérsia, no califado Abasida.

É uma história que merece respeito, até mesmo de um jejuno no conhecimento como Donald Trump ou de um xiíta agressivo como o Aiatolá Khamenei. Mas, em pleno Golfo Pérsico e cercado por vizinhos belicosos como Irã, Síria, Arábia Saudita e ao norte a Turquia numa fronteira que divide com o Curdistão iraquiano (além de Jordânia a oeste e Kuwait ao sul), o Iraque nunca conseguiu fugir de seu destino: depois do reinado babilônico, submeteu-se ao império otomano até 1918 para então, após breve ocupação britânica, cair nas garras de Sadam Hussein que conduziu o país às guerras do Irã e do Golfo, à ocupação do Kuwait e à tentativa de extermínio dos curdos até terminar na forca em 2006. Os norte-americanos que haviam sido enviados por George Bush ai ficaram por oito anos até Obama em 2011 ordenar a retirada das tropas as quais, no entanto, retornaram quatro anos depois a fim de expulsar os combatentes do "Estado Islâmico do Iraque e da Síria". Hoje, pelo menos 5.200 soldados yanques desafiam a tudo e a todos em Bagdá.

País islâmico, o Iraque paga o preço das contradições internas que separam os seguidores de Alá. A maioria da população (quase 60%) é de xiítas e o restante é de sunitas ai se incluindo o grosso dos curdos e dos otomanos. A Constituição estabelece que o principal cargo, de 1º Ministro, deve ser exercido por um xiíta (o atual é Adil Abdul-Mahdi, 76 anos, escolhido como candidato de consenso); a presidência que é pouco mais do que decorativa, por um curdo (Barham Salih, 56), enquanto o presidente do Parlamento deve ser um sunita (Mohammed al-Halbusi, 39). Na prática esse engenhoso esquema não funciona como o esperado, pois o país é submisso às ordens dos EUA e sofre forte influência iraniana. Abdul-Mahdi mostrou ser muito fraco e, não tendo apoio popular nem partidário (é um independente e sequer pertence ao dominante Partido Xiíta Islâmico Dawa), foi forçado em novembro último, a renunciar, mas permanece no posto enquanto não é definido um substituto. A queda se deu após ativas manifestações populares nas ruas contra a corrupção dos governantes e pela incapacidade em serem dadas soluções aos grandes problemas nacionais agravados pelos anos de guerra que conduziram a uma crise sem precedentes.

Desconsiderando tanto a história quanto o não envolvimento do Iraque no caso, Trump ordenou o assassinato do segundo homem mais importante do Irã - Qasem Suleimani - quando saia do aeroporto de Bagdá no meio de uma comitiva de carros à 1:20 da madrugada do último dia 3 de janeiro. Em seguida, o regime de Teerã disparou seus mísseis contra a principal base dos EUA em Bagdá, mas o fez com o devido cuidado de modo a não matar um só americano. Seguiu-se um festival de incompetências de lado a lado.

Primeiro, 56 iranianos pereceram pisoteados quando cercavam o caixão de Suleimani na tentativa de dar-lhe um último adeus. Isso num país acostumado a grandes eventos religiosos abertos e que, portanto, possui a tecnologia necessária para realizá-los e para controlar a massa. Na 4a. feira, 8 de janeiro, um vôo comercial do Boeing PJ652 da Ucrânia após ter a decolagem devidamente autorizada pelo aeroporto Imã Khomeini de Teerã foi abatido por dois mísseis vitimando todas as 176 pessoas, entre passageiros e tripulação, que iniciavam viagem para Kiev. Para surpresa geral o governo do Irã confessou que sim, foi sua a responsabilidade pelo desastrado ataque. No total, 240 pessoas perderam a vida devido à infeliz ideia do Executivo americano de atacar o comboio onde estava Suleimani, 232 delas sem ter nada a ver com o peixe. Em seguida, Donald Trump declarou que não tinha provas reais e nem imaginárias de que, de fato, Suleimani planejava ataques letais a quatro embaixadas dos Estados Unidos na região, com isso repetindo os erros de Bush e retirando qualquer legitimidade aos seus atos deste início de janeiro no Oriente Médio.

Especula-se que o acirramento das tensões entre Estados Unidos e Irã tem como fundo subjetivo a realização este ano de eleições nacionais nos dois países: em 21 de fevereiro serão renovadas as 290 cadeiras do parlamento iraniano. Embora sob rígido controle dos aiatolás o que produz resultados finais pouco confiáveis e com o reduzido espaço político que tem a oposição, nada menos que 16 mil candidatos concorrerão. No final do ano passado o governo forçado pela pressão dos bloqueios americanos decretou um aumento de 33% nos preços da gasolina, o que originou fortes movimentos de protesto pelas ruas das maiores cidades. Cada vez mais os iranianos desacreditam do governo e das possibilidades de reformá-lo e muitos, sentindo-se traídos pelas mentiras contadas a respeito da derrubada do vôo da Ukranian Airlines, devem provocar um número recorde de não comparecimento popular às urnas.

Enquanto isso, se por um lado muitos analistas já contam as eleições americanas de novembro como uma vitória tranquila de Trump obtendo um segundo mandato, outros opinam que o atual conflito que quase provocou nova guerra, poderá produzir efeito contrário, dinamitando as chances de vitória dos republicanos.

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