Comparato condena a desvinculação de verbas para saúde e educação

julho 22, 2016.

Em texto publicado na revista Consultor Jurídico e reproduzido no Informe JRRA (Portal de Economia – www.informe@joserobertoafonso.com.br), o professor da USP José Konder Comparato e Elisa G. Pinto do Ministério Público de São Paulo, analisam a questão das desvinculações de recursos orçamentários federais para as áreas de saúde, educação, assistência e previdência social, colocando-os como direitos fundamentais mínimos conquistados pela sociedade a partir da Constituição de 1988.

Para os dois juristas, “não será com mais discricionariedade orçamentária em tempos de crise fiscal que corrigiremos as distorções, desvios e abusos.”  Leia o texto na íntegra, a seguir.__(VGP)

Custeio mínimo dos direitos fundamentais, sob máxima proteção constitucional

(In: Revista Consultor Jurídico, 1712/15- Por Fábio Konder Comparato e Élida Graziane Pinto*)

Em quaisquer tempos e países regidos pelo Estado Democrático de Direito, o orçamento público tem por finalidade central o esforço de assegurar a concretização dos direitos fundamentais no bojo da sociedade a que se refere.

Enquanto subsistir a presente crise fiscal vivida pelo Brasil, esse norte constitucional nos revela uma verdadeira régua de Justiça entre as despesas que devem ser mantidas e os gastos que podem ser reduzidos e/ou extintos. Trata-se de parâmetro objetivo e inquestionável, mormente diante do cenário de arrecadação instável e em tendência decrescente.

Esquecer ou falsear a premissa em questão inviabiliza a administração legítima e transparente dos grandes conflitos distributivos que se abrem nos cotidianos processos de elaboração e execução dos nossos orçamentos governamentais.

Daí, portanto, extraímos a profunda fragilidade de propostas que acenem para a desconstrução do regime de vinculações orçamentárias que amparam o custeio de direitos fundamentais no federalismo brasileiro.

Sob o pálio da Constituição de 1988, as receitas vinculadas à seguridade social e os pisos de gasto em saúde e educação são instrumentos de proteção orçamentário-financeira de direitos que não podem ser minorados ou negados. Eis uma síntese conclusiva tão simples, quanto a própria constatação do profundo déficit de efetividade de tais direitos em nossa sociedade.

Aliás, para quem defende a extinção das vinculações orçamentárias, o problema de efetividade das políticas públicas de saúde e educação, por exemplo, seria consequência da baixa qualidade do gasto público, o que, por seu turno, justificaria a retirada dos pisos que lhes amparam. Mas essa linha de raciocínio, ao nosso sentir, não se sustenta.

Embora seja verdadeira a constatação de que é preciso aprimorar a gestão de tais gastos vinculados, não se pode resolver o impasse simplesmente ampliando a margem de liberdade alocativa dos gestores públicos.

Para conter o elevado grau de correlação entre a corrupção e a baixa qualidade dos gastos públicos (quer tenham sido feitos a partir dos pisos constitucionais em saúde e educação ou realizados com os recursos vinculados à seguridade social), precisamos de mais transparência e melhor planejamento na identificação de metas e custos, para que seja possível a aferição concreta de resultados, ao longo do processo concomitante de controle das despesas ali empreendidas.

Não será com mais discricionariedade orçamentária em tempos de crise fiscal que corrigiremos as distorções, desvios e abusos. Muito antes pelo contrário, a ampliação irrestrita da discricionariedade orçamentária desconstruirá o processo civilizatório a que temos nos proposto na seguridade social, na universalização da educação básica obrigatória dos quatro aos 17 anos de idade e no Sistema Único de Saúde (SUS), de cobertura pública integral e plena a todos os cidadãos.

Negar a própria existência de qualquer prioridade alocativa em favor dos direitos fundamentais no bojo dos orçamentos públicos brasileiros é estratégia que certamente não se destina a prover melhores serviços públicos, mas apenas dá causa a uma inversão de prioridades vedada constitucionalmente.

O ordenamento pátrio, contudo, não admite um orçamento governamental que refute o custeio mínimo dos direitos fundamentais, para passar a suportar majoritariamente encargos financeiros da dívida pública. Vale lembrar que essa, por seu turno, segue carente de limites constitucionais e parâmetros de motivação, transparência e economicidade.

Em meio à crise política e econômica, tal inversão de prioridades, na prática, apresenta-se à sociedade por meio da iminente vinda da 8ª emenda de desvinculação parcial das receitas da União (DRU). Também nos são oferecidas, como imprescindíveis mecanismos de ajuste fiscal, propostas que visam à adoção da DRU pelos entes subnacionais e agendas que propugnam simplesmente o fim de todas as vinculações orçamentárias. Em face de todas essas iniciativas e medidas, manifestamos nossa clara convicção de que elas contrariam nossa Constituição Cidadã. Nosso convencimento se firma na perspectiva de que o comando de imutabilidade que confere máxima proteção aos direitos fundamentais também se estende às suas garantias estatuídas constitucionalmente. Ora, assim como o habeas corpus está para a liberdade de locomoção, o dever de custeio mínimo está para os direitos sociais à saúde e à educação, os quais hão de ser providos pelo Estado em caráter progressivo.

A vedação de retrocesso na seguridade social, em igual medida, foi fixada no artigo 194, parágrafo único, inciso IV da nossa Constituição, como uma verdadeira garantia de irredutibilidade do valor dos benefícios, o que, obviamente, inclui o estágio de oferta de serviços no âmbito do SUS e da assistência social, e não apenas da previdência social.

Eis a razão pela qual afirmamos, com ênfase, a existência na Carta de 1988 de um verdadeiro microssistema de tutela do custeio dos direitos fundamentais. As garantias de financiamento contidas no próprio texto constitucional revelam um grau máximo de proteção, para que os orçamentos públicos não sejam omissos quanto à satisfação material daqueles direitos.

Interessante aqui retomarmos a perspectiva de que o princípio geral de não afetação da receita de impostos admite a exceção aberta pelo artigo 167, inciso IV, em sua parte final, em favor da proteção aos direitos fundamentais à saúde e à educação. Em uma interpretação sistemática, depreendemos que os patamares de gasto mínimo em favor de tais direitos, de fato e de direito, já são considerados como conteúdo imutável das legislações orçamentárias, até para que se possa aferir a aventada restrição da “reserva do possível” para fazer face às demais políticas públicas.

Estamos em pleno processo pedagógico e civilizatório de assegurar a saúde, a assistência e a previdência social, bem como de educar nossos cidadãos, o que não pode ser obstado ou preterido por razões controvertidas de crise fiscal. Hoje, mais do que nunca, o mínimo de vida digna passa pela garantia dos direitos fundamentais em comento. Nada há de mais prioritário nos orçamentos públicos que tal desiderato constitucional, sob pena de frustração da própria razão de ser do Estado e da pactuação social que ele encerra.

Por todas essas razões, não aceitamos como constitucionalmente válidas as iniciativas e deliberações tendentes a constranger as garantias que fixam o núcleo financeiro protetivo dos direitos fundamentais. Se se restarem alheios a essa proteção máxima, os orçamentos públicos simplesmente atentarão contra a Constituição de 1988, que, antes de mais nada, é cidadã, porque fundada em torno da dignidade da pessoa humana.

*: Fábio Konder Comparato é professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.

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