Em busca do vinho perfeito

maio 06, 2015.

Pierre tomou todos os cuidados possíveis para, dessa feita, encontrar aquilo com que sempre sonhara antes que a velhice o derrotasse. Analisou cada linha e cada detalhe do catálogo elaborado pelo Serviço Nacional de Florestas, o ONF (Office Nationale de Fôrets) e escolheu a Parcela 351 da mata de Tronçais em Allier, no coração da França. A oferta de venda era para a parcela inteira, com 90 árvores, todas de carvalho séssil, ou melhor, quercus petrae com uma média de 30 metros de altura e idade entre 130 e 200 anos. Quando seu filho nasceu colocou-lhe o nome Petraeus – Émile Petraeus – pois desejava que o menino fosse forte como um carvalho. Sua longa experiência como tanoeiro iria agora ser posta à prova, pois só ele sabia que, entre tantas, havia uma que era única, superior a todas as demais. Não queria intermediários, mas isso significava que teria de ir a campo, examinar as árvores a serem compradas. Entrou na mata, passou pela Parcela 234 onde já estivera centenas de vezes. Mesmo assim, parou junto a dois monumentos: a Chêne (carvalho) de la Resistance, um gigante de 41 metros nascido em 1640 e que em plena segunda guerra fora batizada com o nome do marechal Pétain, o homem que administrou a França como títere de Hitler. Logo adiante a impressionante St. Louis, sete metros a menos. Fez-lhes a devida reverência e seguiu procurando até ficar frente a frente com o seu ideal, um imenso tronco de 6,4 metros de circunferência, 35 metros de altura, 305 anos de idade. Armado com uma lupa, o cinzel e o martelo fez uma incisão suave com apenas 30 centímetros de fundo para não romper a integridade da casca em espiral. Os grãos eram finos, estreitos e o efeito da tilose de fato bloqueara a passagem de líquidos pela madeira conservando-a, por assim dizer, pura. Era isso que explicava a escolha do carvalho para as barricas de vinhos ao invés de troncos de castanheira, acácia, cerejeira, todas muito porosas e até mesmo da nogueira, sujeita a carunchos. O caule, a casca, tudo extraordinariamente ajustado, aroma a baunilha e especiarias numa variedade incrível. Pierre encontrara o carvalho perfeito, sem defeitos, uma proeza incrível considerando que a França possui 14 milhões de hectares em florestas, 40% de todas as que estão plantadas na Comunidade Europeia e 1/3 delas de carvalho. Dali construiria as melhores barricas para que delas surgisse o melhor vinho já produzido pelo homem, o vinho perfeito.

Esperou pelos leilões de setembro em Moulins e quando o “seu” lote foi anunciado fez o primeiro lance, superando em mil euros o preço básico fixado pelo ONF. Um industrial do ramo da construção civil e um fabricante de móveis de alta qualidade também fizeram lances, mas ele sempre repicava com uma oferta superior e não demorou a ser declarado o vencedor. A parcela 351 era sua! Precisava seguir as regras: aguardar que o guarda florestal fizesse o abate das árvores durante o inverno, acompanhar o merrandier, a cujo cargo ficaria a transformação da madeira nas aduelas (com 1,10 metro cada uma) que ainda seriam submetidas à secagem natural, empilhadas no pátio, nos próximos três anos.

A opção por Tronçais não fora gratuita. Nos últimos anos Pierre visitara as outras grandes florestas francesas em Limousin, Nevers, Vosges, Jura, até em Argonne onde a madeira se destina aos fabricantes de champagne.  Checou as alternativas – em geral bem mais baratas – na Rússia, Croácia, Espanha e Portugal, além de dedicar-se ao estudo da produção norte-americana principalmente no meio-oeste, nos Apalaches e em Oregon. Esteve ainda nos leilões de Chateauroux, Orleans, Le Mans, Blois, Cerilly, Fontainebleau, mas sempre por algum detalhe voltava a concentrar-se em Tronçais, para ele (e para a grande maioria dos tanoeiros franceses) inigualável. Tipos de carvalho há muitos, mas só três produzem boas barricas de vinho: quercus séssil, pedunculado e alba que é o branco americano.

A política de proteção e manejo das florestas francesas remonta ao século XVII no reinado de Luis XIV que impôs controles para o abate a fim de fornecer matéria prima para a armada francesa. Por volta de 1850 a Marinha não mais se interessou pela madeira, mas a estrutura de gestão das matas já se consolidara e persistiu, modernizando-se gradativamente. Hoje, há uma relação de 3 x 1, ou seja, para uma árvore abatida há três em pé e somente as que chegam à maturidade podem ser cortadas. De 25 em 25 anos cada floresta é submetida a um processo de limpeza para desbaste e remoção das que morreram ou de ervas daninhas.

Pierre, vendo a vida chegar ao fim, chamou seu filho e o fez jurar que assumiria a missão de produzir o vinho sem igual ao qual aquelas barricas se destinavam. Num último esforço juntou trinta e duas aduelas, cingiu-as com aros de metal até dar um desenho inicial de barrica e, com ela no chão, uma só extremidade fechada, fez o fogo para aquecê-la e dar-lhe aos poucos o formato final. Era mestre nisso e logo o fogo fraco foi dando lugar a labaredas cada vez mais intensas por 40 minutos. Mestre que era, não desgrudou o olho da tosta um segundo sequer, atiçando ou reduzindo as chamas até considerar o barril pronto. Deu-lhe orientações precisas: deveria ser um tinto, com uvas pinot noir de Beaune na Borgonha, sua terra natal. Todo o processo tradicional teria de ser obedecido, ou seja, nunca deveria permitir que alguém colocasse lascas, ripas ou sachés com pó de carvalho no mosto. “Vinho deve ser feito de uva”, repetiu. Explicou que muitos produtores, em especial os do Novo Mundo, não têm paciência para se adaptarem aos padrões de alta qualidade com que os gauleses tratam suas matas. Apressados, imaginam que alguns aditivos como fermentos, enzimas e substâncias químicas de toda ordem podem emular os aromas desejados. Lembrou ao filho que tais práticas, largamente usadas em outros países, ainda são proibidas na França. Voltou a afirmar que em sua opinião o consumidor deveria ser informado a respeito de como o sabor e o “aroma a carvalho” do vinho que está bebendo foi produzido. Petraeus acalmou o pai, dizendo-lhe que a sua odisseia podia terminar. Daqueles barris perfeitos surgiria o vinho perfeito.

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