O Capital de Piketty, na ótica do primeiro mundo

dezembro 31, 2014.

A contradição central do capitalismo está em que o rendimento do capital supera as taxas de crescimento da renda e da produção, uma contradição fundamental que leva o dinheiro a se reproduzir sozinho, dominando aqueles que só podem contar com a própria força do trabalho. Aconteceu não por falta de aviso. Aristóteles, que viveu de 384 a 322 A.C., já dizia que dinheiro não deve gerar dinheiro. Os empréstimos a juros, a usura, certamente contribuíram para o acúmulo da riqueza nos bolsos de um número sempre pequeno de milionários que hoje se tornaram bilionários. Nos Estados Unidos a camada dos 1% mais ricos detém 35% de todo o patrimônio existente no país. Considerando que o resultado dessa situação é a formação de um círculo vicioso de desigualdade entre os homens – de um lado os que acumulam e de outro os que trabalham -, um jovem economista francês, Thomas Piketty (44 anos) em seu livro “O Capital no século XXI” (Ed. Intrínseca, 2014) propõe um imposto mundial sobre o capital “para que a democracia retome o controle do capitalismo”.

O livro, originalmente lançado em Paris um ano antes da edição em português, merecidamente já um best seller entre os economistas, não por acaso copia o célebre título de Karl Marx que apresentou o 1º tomo do seu O Capital em 1867. Faleceu dezesseis anos depois sem conseguir terminar os dois tomos seguintes, tarefa que coube a Engels a partir das notas deixadas pelo mestre. Para Piketty o essencial, agora, seria dispor de dados mais abrangentes, permitindo-lhe elaborar conclusões com base em séries históricas confiáveis. Teve êxito, mas apenas para vinte países. A França em primeiro lugar, em seguida o Reino Unido, os Estados Unidos, a Alemanha, a Suécia, e com mais algumas pinceladas relativas à China, Índia, Japão, Canadá e mais um ou outro dos demais europeus, pronto: a história, o presente e o futuro das finanças globais foi contada. Assim, com a exceção dos inevitáveis (por seu porte) asiáticos, o que temos é um enfoque sobre o capital restrito ao primeiro mundo. Os demais são olimpicamente ignorados. Em duas páginas (do total de 637) sobre o “Estado social nos países pobres e emergentes”, conclui: “Em todo caso, a questão do desenvolvimento de um Estado fiscal e social no mundo emergente reveste-se de uma importância fundamental para o futuro do planeta”. Pena que não tenha se dedicado à questão. Atitude oposta tomou o também jovem economista indiano Fareed Zakaria, editor da Newsweek, que inicia seu livro “O mundo pós-americano” (Companhia das Letras) - onde as tradicionais economias britânica e francesa pouco aparecem -, falando da “ascensão do resto”.

O capital é definido como sendo tudo o que pode ser vendido e comprado (ou genericamente adquirido) em algum mercado. Reúne, portanto, o capital financeiro e o imobiliário, mas exclui o capital humano e sofre a influência, entre muitos, de dois fatores relevantes. Um é a inflação, que é uma invenção do século XX, pois inexistia até a 1ª. Guerra Mundial (o Imposto de Renda surgiu em 1909 no Reino Unido e em 1913 nos EUA). Outro é o crescimento demográfico que no mundo foi mínimo (0,1% ao ano) entre os anos 0 e 1700, mas dai até 2012, a uma taxa anual de 0,8% permitiu que em três séculos a população da Terra se multiplicasse por dez, indo de 700 milhões para 7 bilhões. Caso tal progressão se mantenha, teremos 70 bilhões no ano 2300. As previsões são de que tal hecatombe será evitada, pois o esperado é que a partir de 2050 o crescimento seja negativo pelo menos na Europa e na Ásia (e nulo nas Américas). Outro ponto se refere à arrecadação pública que tem sido de 50% da renda nacional na Europa e de 35% nos EUA e Japão, mas não alcança 20% na América Latina e 15% na Índia e na África. Segundo Piketty, a experiência histórica diz que arrecadações entre 10% e 15% não custeiam nada além das “funções soberanas tradicionais”, ou seja, se quisermos polícia e justiça funcionando, nada sobra para educação e saúde. A alternativa é pagar mal a todos para ter serviços ruins (mais ou menos como se vê no Brasil, que por sinal não é sequer citado no livro).

Para superar a contradição central do capitalismo, Piketty diz que estimular o crescimento investindo em educação (este é o mantra atual: a educação é o caminho!), em conhecimento e em tecnologias não poluentes é uma solução provisória aplicável somente a alguns países ou regiões em períodos de grande expansão como, hoje, a China e alguns emergentes. Para ele a melhor solução é o Imposto Progressivo Anual sobre o Capital. Sugere taxas limitadas a algo entre 0,1% e 0,5% para patrimônios inferiores a 1 milhão de euros; 1% para os que estão entre 1 e 5 milhões de euros e até 5% a 10% ao ano para os situados em centenas de milhões ou bilhões de euros. O papel do imposto não é financiar o Estado Social, e sim regular o capitalismo. Reconhece que isso é uma utopia a exigir alto grau de cooperação internacional e integração política regional, mas argumenta que apesar do risco de fragilizar o precário equilíbrio mercantil existente, não parece haver outra escolha para retomar o controle do capitalismo do que apostar todas as fichas numa fórmula em cuja essência está a democracia.

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