Argentina: da ditadura de ontem à crise de hoje

outubro 26, 2014.

O período da ditadura argentina – 1976 a 1983 –, denominado pelos militares de Processo de Reorganização Nacional, passou à história como uma tragédia nacional com o saldo de cerca de 30 mil desaparecidos graças ao golpe de Estado que derrubou a presidente María Estela Martinez de Perón. As leis de Punto Final e de Obediencia Debida foram anuladas em agosto de 2003 e em seguida, ao ser decretada a inconstitucionalidade dos indultos concedidos durante o governo de Carlos Menen, foi possível começar os processos de julgamento dos torturadores. Esta semana quinze militares da reserva e civis acusados por crimes de lesa-humanidade cometidos no centro clandestino de La Cacha (situado num bairro de La Plata) foram sentenciados com a pena perpetua, enquanto outros seis receberam penas de no mínimo dez anos de prisão. Os juízes Carlos Rozanski, Pablo Veja e Pablo Jantus definiram a condenação por delitos de homicídio qualificado e tortura de 135 pessoas “no genocídio perpetuado durante a última ditadura cívico-militar”. Entre os parentes das vítimas que lotaram a sala do tribunal estava Estela de Carlotto, líder das Avós da Plaza de Mayo que teve uma filha assassinada pelo aparelho repressor governamental. Ela aplaudiu em especial o veredicto contra Miguel Etchecoltz, ex-Chefe de Polícia da província de Buenos Aires que, assim, recebeu sua segunda condenação perpetua. Um balanço feito no ano passado contabilizou 378 repressores condenados, 232 com juízos em tramitação e outros 1.013 arrolados em causas recém iniciadas. Este é o resultado da decisão da justiça de fazer megajulgamentos para apressar um processo que ameaçava tornar-se interminável, inclusive porque não concedia privilégios aos chamados “altos mandos”. Reynaldo Bignone, o último ditador militar argentino recebeu, em processos distintos, três condenações de prisão perpetua mais uma última de 23 anos de cárcere. Já o general Jorge Rafael Videla, Presidente de 1976 a 1981, que cumpria pena máxima, faleceu na prisão em maio último. Três dos maiores processos, da Escuela Mecánica de la Armada (ESMA) de Buenos Aires, La Perla de Córdoba, Arsenales y Jefatura de Inteligencia de Tucumán, envolvem 1.500 vítimas e 150 acusados. Num dos processos, médicos obstetras são julgados por terem induzido o parto em prisioneiras, logo deixadas a morrer, enquanto os bebês eram destinados à adoção. No entanto, a Argentina tem problemas mais concretos e imediatos com que se preocupar: o déficit fiscal, a inflação, a disputa com os fundos abutres ou holdouts (que se recusam a firmar um acordo) na linguagem técnica e o pavoroso governo de Cristina Kirchner. A inflação, segundo o Índice Congresso – mais confiável que as estatísticas sempre maquiadas do governo – chegará a 40% este ano e a forte crise cambial fez com que o país suspendesse, uma vez mais, os pagamentos aos exportadores brasileiros. Segundo o Banco Mundial um choque econômico agora pode levar 40% dos argentinos à pobreza em uma economia abalada pela queda das reservas que diminuíram de US$ 52 bilhões em 2011 para os atuais 28 bilhões. Um terço dos argentinos vive em condições vulneráveis (1 a 4 dólares por dia) e 11% estão num estado de extrema pobreza. O juiz norte-americano Thomas Griesa declarou o país “em desacato” por ignorar a decisão de pagar US$ 1,3 bilhão a Fundos de Investimento como juros por títulos da dívida comprados em 2011 no período de moratória. Tratam-se dos Fundos que não aceitaram receber com o agudo deságio oferecido pelo Tesouro argentino. O governo de Kirchner plasmou o apelido de “abutres” e quer uma mediação da Corte de Haia e da ONU. Griesa bloqueou o pagamento da dívida estruturada levando o país a cair em novo default (por inadimplência) no final de julho último Ela chegou ao ponto de, numa atitude totalmente inapropriada, tentar aproveitar-se do momento em que foi recebida pelo Papa Francisco, pedindo-lhe o impossível: uma intervenção contrária aos Fundos. Fazendo inveja ao PT brasileiro, que também deseja controlar a imprensa, Cristina tenta sufocar o complexo das comunicações que edita o Clarín, principal jornal do país. Uma lei de 2009 reduziu licenças de rádio e TV de uma mesma empresa e agora a “Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual - AFCSA”, depois de aceitar, decidiu recusar o plano de autoajuste apresentado pelo Clarín, ameaçando fatiar o grupo. Perdidos entre os fantasmas do passado e as garras das águias do presente os portenhos lutam para pagar as contas de cada mês.

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