Vinhos: californianos ou franceses?

fevereiro 09, 2014.

    Há trinta anos atrás o universo dos vinhos mudou, mas uma dúvida crucial permaneceu no ar: o novo mundo conseguiria produzir, algum dia, tintos realmente capazes de se tornarem cada vez melhores com o envelhecimento? Em maio daquele ano, no evento que depois de uma modesta resenha publicada no Times tornou-se o símbolo dos tempos que viriam, o Julgamento da Degustação de Paris colocou os melhores vinhos cabernet de Bordeaux e chardonnay da Borgonha frente a seus similares da Califórnia, para prova às cegas por uma equipe dos melhores especialistas e o resultado, surpreendente, ecoou forte pelos quatro cantos da terra: em ambos os casos venceram os californianos de Napa Valley: em 1º o Stag's Leap de 1973 e em 2º o Ridge Monte Bello 71 nos tintos, e o Chateau Montelena 1973 nos brancos. 

    "Tudo bem. Eram vinhos de safras recentes e os norte-americanos, com seu buquê mais aberto, típicos da juventude, capazes de ganhar corpo mais rapidamente, levaram vantagem. Com o tempo é que as verdadeiras diferenças vão aparecer", disseram os franceses, sem esconder a desilusão, pois haviam entrado na competição com o melhor de que dispunham, ou seja, os grandes clássicos cuja tradição vinha de 1855, quando Napoleão III estabeleceu quem era quem nos terroirs nacionais, fazendo nascer a "lista dos vinhos tintos classificados da Gironde", nomeando 60 grands crus, desde então a nata da nata.

    Nessas três últimas décadas muita coisa mudou e não só no restrito terreno dos vinhos tope de linha. Nas marcas de base, mais baratas e acessíveis ao grande público é que os gauleses se deram mal. Com uma farta produção prejudicada por vinhos de qualidade discutível, perderam a vez para concorrentes de vizinhos europeus e dos países do novo mundo, da Austrália passando pela África do Sul e daí ao Chile e à Argentina. Restava a batalha principal. No último dia 24 de maio, das 17h30 às 20h30 repetiu-se com rigor a degustação de 76, às cegas e com os mesmos vinhos, envelhecidos por mais trinta anos, nas adegas subterrâneas da famosa Berry Bros&Rudd na St. James Street em Londres e simultaneamente na COPIA, o grande centro de vinhos, alimentos e artes de Palo Alto em pleno Napa Valley. Ao final, para espanto geral, os cinco primeiros foram, na ordem: Ridge Monte Bello 1971, Stag's Leap Wine Cellars 1973, Heitz 1970, Mayacamas 71, Clos du Val 1972, todos da Califórnia/EUA, que souberam envelhecer melhor que os do velho mundo. Os franceses de Bourdeaux ocuparam da 6a. à 9a. posição: os Chateau Mouton-Rotschild 1970, Monrose 1970, Haut-Brion 1970 e Leoville-las-Cases 1971 (em 10º o californiano Freemark Abbey, 1969).

O Ridge, cuja vitória foi indiscutível (137 pontos contra 119 do 2º e 105 do 6º), é fruto de uma empresa jovem, fundada em 1959 por quatro pesquisadores da Universidade Stanford de Palo Alto, que ganhou notoriedade em 1970 quando recebeu a visita de Harry Waugh, famoso escritor inglês do ramo, que gostou do que bebeu e o chamou de "o Chateau Latour (então o número um na França) da Califórnia". A uva cabernet sauvignon não é exclusiva no Monte Bello, do qual costuma participar com cerca de 80%, acompanhado pela merlot com 11% e petit-verdot com 9%, tendo um teor alcoólico próximo dos 12,5%. Um especialista procurou defini-lo: um profundo matiz vermelho granada; definição brilhante no nariz, lembrando madeira, anis; no palato bem balanceado, sensual, elegante com base de cereja, nozes e chá preto; muito clássico e sofisticado, natural e, enfim, excelente. É produzido nos altos da montanha de Santa Cruz da cidade de Cupertino, a uma hora de carro de San Francisco. Quem quiser visitar a vinícola terá de alugar um carro no centro e chegar lá entre 11h e 16h num sábado ou domingo. Não há tours e a casa não vende comida. No centro da cidade, um jantar no conhecido restaurante Spago está sendo oferecido a 160 dólares por cabeça, o que inclui uma prova do Monte Bello, safra recente.

Vale lembrar que, paralelamente, aconteceram em Londres e Palo Alto, outras quatro degustações independentes e com vinhos contemporâneos: brancos da Borgonha (venceu o Puligny-Montrachet 2002 Domaine Leflaive), chardonnays da Califórnia (Talley 2002 Rosemary's Vineyards), tintos de Bordeaux (Chateau Montrose 2000) e cabernets californianos (Clos du Val 2000 Reserve).

Por fim, sugiro que, caso a leitora ou o leitor tiver um Ridge Monte Bello 71 em casa, faça uma destas três opções: a) beba-o de imediato para fugir dos invejosos; b) mantenha-o na adega envelhecendo, com a duvidosa esperança de que melhore ainda mais; c) presenteie-o a este modesto escriba, que se compromete a dividi-lo com os colegas da confraria.

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